O boticário que se tornou um dos maiores intelectuais espíritas do Brasil

O boticário que se tornou um dos maiores intelectuais espíritas do Brasil

Juliana Sayuri – Do TAB, em Matão (SP) 08/06/2022.

Entre os ladrilhos lascados e desbotados pelo tempo, ainda dá para ler na esquina entre a rua Rui Barbosa e a avenida 28 de Agosto: Pharmacia Schutel. Hoje, o endereço abriga uma Multidrogas, drogaria multicolorida e marcada por um cartaz colossal "aqui tem farmácia popular" como chamariz.

Mas quando Cairbar Schutel (1868-1938) chegou ali, era tudo mato, literalmente. Era, dizia-se na rádio, "um pequenino vilarejo, cercado de gragoatãs, guabirobas, indaiás, joás, ingás, marias-pretas, ariticuns, cobras, onças, macacos e mata virgem, com perobeiras, jequitibás, embaúbas, cabreúvas, paus d'alho, cedros, jacarandás e uma imensidade de árvores seculares, servindo de trono às aves canoras, no despertar das madrugadas e cerrar das Aves-Marias". Era assim a vila do Senhor Bom Jesus das Palmeiras, a atual cidade de Matão, no interior de São Paulo.

Schutel, um jovem farmacêutico carioca, saiu do Rio de Janeiro em busca de ares mais tranquilos — e mais distantes da tuberculose, a infecção que rondava a capital à época. Passou por Piracicaba, Itápolis e Araraquara até se instalar no vilarejo, em 1895. Ele abriu a farmácia de esquina no centro da vila.

Ao redor, construiu casinhas de madeira para abrigar hansenianos (à época estigmatizados como "leprosos") e internos (tidos como "loucos" por outras instituições). "Tratava todo mundo, inclusive quem não tinha condições de pagar", conta Lúcia Helena Marchesan, 67, no endereço onde um dia viveu o boticário que ficou conhecido como "o pai dos pobres de Matão". Lúcia é quem hoje abre as portas da construção centenária, que foi convertida no Memorial Cairbar Schutel no fim de 2013. Fechado devido à pandemia de covid-19, o memorial reabriu recentemente a visitantes, mediante agendamento prévio.

A poucos passos da farmácia, a casa amarela abriga antigos frascos de remédio, fotografias, documentos oficiais da cidade, panfletos, uma Bíblia rara de 1832, uma caderneta de identidade da Associação Paulista de Imprensa, uma máquina de escrever Royal 10, livros que o carioca escreveu e cartas que trocou com intelectuais ingleses e franceses interessados em fenômenos espíritas.

O acervo dá pistas das diferentes facetas de Schutel: além de farmacêutico, foi um dos responsáveis por elevar o vilarejo à condição de cidade, em 1898, e ocupou o cargo de intendente de Matão (o equivalente a prefeito nos dias atuais); católico, abraçou o espiritismo e se tornou um de seus maiores propagadores, às vezes tratado como "bandeirante" espírita: fundou o Centro Espírita Amantes da Pobreza e o jornal O Clarim em 1905, ajudou a construir o Hospital de Caridade em 1913, iniciou a Revista Internacional de Espiritismo em 1925 e fez conferências de rádio sobre a religião na década de 1930.

'Amantes da pobreza'

"Cairbar foi pioneiro", diz Cássio Leonardo Carrara, 34, autor de "O Som da Nova Era", livro-reportagem que trata da trajetória do jornal mensal O Clarim. De Mineiros do Tietê (SP), Cássio cresceu ouvindo as histórias de Schutel na sua família, espírita desde os tempos de seu bisavô. "Lembro de meu pai lendo 'E, para o resto da vida' [livro de Wallace Leal Valentin Rodrigues] para nós, lembro da revista e d'O Clarim entregue em casa", conta. Cássio se mudou para Matão na adolescência e depois cursou jornalismo na Uniara (Universidade de Araraquara), campus a 30 km dali. Desde 2011 trabalha como jornalista na Casa Editora O Clarim, que até hoje publica o jornal O Clarim e a Revista Internacional de Espiritismo — eles não divulgam a tiragem. A edição de junho da revista, por exemplo, discute como conflitos íntimos impactam na sociedade através da intolerância e da violência. "Cairbar é uma referência intelectual. O espiritismo não tem estrutura hierárquica, não tem líder", diz o escritor.

Antes dele, quem por muito tempo liderou a produção foi o editor Apparecido Belvedere, 94, atualmente afastado por motivos de saúde. Na juventude, Belvedere frequentava o Centro Espírita Cairbar Schutel no Itaim Bibi, na zona sul da capital paulista, e visitava Matão todo agosto, mês de aniversário d'O Clarim. Na década de 1970, mudou-se para lá e, até pouco tempo, fazia trabalho voluntário na editora.

"Tudo é voluntário", diz Lúcia Marchesan, atual vice-presidente da casa, que busca se manter com a venda de livros e assinaturas, além de doações.

A certo ponto, conta Cássio Carrara no livro "O Som da Nova Era", o Centro Espírita Amantes da Pobreza não inspirava muita confiança em bancos e empresas — "se são amantes da pobreza, talvez acabem não tendo como honrar seus compromissos conosco", pensava-se. Na verdade, a expressão queria dizer amor aos pobres, a caridade com quem necessita, devido a pobreza não só material, mas intelectual, sentimental e de espírito. Dada a confusão, decidiu-se em 2003 rebatizar a instituição como Centro Espírita O Clarim.

Debaixo do guarda-chuva do centro estão a Casa Editora O Clarim e o Memorial Cairbar Schutel. O centro possui um auditório com bancos de madeira cedidos pelo antigo cinema da cidade, uma livraria e salas para reuniões mediúnicas, estudos e evangelização, frequentadas por cerca de 30 pessoas. A editora corresponde a uma pequena redação — em 2010, os dirigentes decidiram desmontar o parque gráfico e terceirizar a impressão, pois o maquinário já estava defasado e seria caro demais modernizá-lo.

'Sou imortal'

Mário de Andrade (1893-1945) escreveu o manuscrito de "Macunaíma" na chácara Sapucaia, na cidade de Araraquara, em 1926. Na época, o autor modernista visitou Matão. "Quando por lá passou, foi à farmácia e visitou as instalações da gráfica do jornal O Clarim, e parece não ter desgostado daquela que descreveu como 'cidadezinha progressista'", contou no Facebook o crítico literário Paulo Franchetti, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). A farmácia foi um ponto de encontro intelectual e cultural da cidade, considera o crítico matonense.

Após a morte de Cairbar Schutel, a drogaria passou para Alberto Benassi, conhecido como Seu Albertinho, que por muito tempo preservou a estrutura tal qual a original do boticário, com armários e balcões de madeira. Seu Albertinho faleceu recentemente e no endereço se instalou uma filial da franquia Multidrogas.

Foi nos tempos de farmácia que Schutel se tornou espírita, enquanto buscava respostas sobre seus sonhos: órfão na infância, o jovem farmacêutico vinha sonhando constantemente com os pais. Primeiro procurou um padre, que lhe sugeriu deixar a história do além pra lá. Passou então a buscar outras fontes de informação, juntando-se a amigos em sessões de tiptologia, experiência que os espíritas realizam com mesas giratórias. Para espíritas, a morte não é o fim: todos teríamos vidas passadas e as reencarnações seriam oportunidades para melhorarmos, evoluirmos.

A inspiração vem do autor francês Allan Kardec (1804-1869), que "codificou" O Livro dos Espíritos, em 1857 — 18 de abril, data de lançamento do livro, foi escolhido como Dia Nacional do Espiritismo, instituído pelo Congresso e publicado no Diário Oficial de 31 de maio. No Brasil vive o maior contingente de espíritas kardecistas do mundo, com cerca de 3,8 milhões de adeptos, segundo os dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Cairbar Schutel foi enterrado no cemitério de Matão. "Vivi, vivo e viverei, porque sou imortal", diz sua lápide. A frase teria sido ditada pelo editor e psicografada pelo médium paulista Urbano de Assis Xavier (1912-1959), seu discípulo. Do lado "de lá" é difícil dizer, mas do de cá sobreviveu seu legado: influente até hoje, ele dá nome a diversos centros espíritas, hospitais, centros de assistência, abrigos, avenidas e ruas Brasil afora.

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