Misericórdia e reconciliação

Misericórdia e reconciliação

Antonio Cesar Perri de Carvalho

Com a ênfase dada por Allan Kardec ao ensino moral, em “O Evangelho segundo o Espiritismo” torna-se possível aprofundarmos os ensinos de Jesus com base nos princípios espíritas. Uma diferença substancial entre o Antigo e o Novo Testamento é nova visão sobre Deus e sua justiça apresentada por Jesus, trazendo a bandeira da lei do amor.

O sermão da montanha é uma autêntica proclamação de bases para uma nova sociedade. Entre outras bem-aventuranças, um diferencial importante do Novo Testamento surge nas palavras:

“Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque obterão misericórdia” (Mateus, 5:7.), mais à frente corroborado pelo registro do evangelista: “Se perdoardes aos homens as faltas que cometerem contra vós, também vosso Pai celestial vos perdoará os pecados; mas, se não perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial também não vos perdoará os pecados” (Mateus, 6:14 e 15.).

O Codificador prossegue no capítulo X da obra básica citada, transcrevendo também: “Se, portanto, quando fordes depor vossa oferenda no altar, vos lembrardes de que o vosso irmão tem qualquer coisa contra vós — deixai a vossa dádiva junto ao altar e ide, antes, reconciliar-vos com o vosso irmão; depois, então, voltai a oferecê-la” (Mateus, 5:23 e 24.).

Claramente ressaltam as propostas de misericórdia e de reconciliação, separando-as dos atos religiosos tradicionais, ritualísticos e formais. A propósito dessa proposta, Kardec anota “Jesus ensina que o sacrifício mais agradável ao Senhor é o que o homem faça do seu próprio ressentimento”.

Em rápidas pinceladas faremos algumas relações bibliográficas sobre o tema. Em síntese, o Codificador deixa claro no Capítulo XI:

“Quando as adotarem para regra de conduta e para base de suas instituições, os homens compreenderão a verdadeira fraternidade e farão que entre eles reinem a paz e a justiça. Não mais haverá ódios, nem dissensões, mas tão somente união, concórdia e benevolência mútua.”

Sobre essa proposta, muitas vezes de difícil praticização, também encontramos registros do apóstolo Paulo em sua 2ª Epístola aos Coríntios, que foi escrita reunindo recomendações em função dos choques de posturas entre os que tinham ideias judaizantes, outros intelectualizadas e os fieis seguidores dos ensinamentos de Jesus. Eis alguns versículos marcantes:

“3.3 Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração. […] 5.17 Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo. […] 5.19 Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação. 5.20 De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus.”

Paulo deixa claro que não se trata de mero formalismo de perdão e de reconciliação, por isso enfatiza “tábuas de carne do coração” e a nova postura de “embaixadores da parte de Cristo”. A propósito das situações complexas que se vive no relacionamento entre as pessoas, na mesma Epístola, Paulo recomenda:

“4.8 Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. 4.9 Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos.” Essas lembranças de textos de Mateus, Paulo e Kardec podem servir de orientação e estímulo para refazimento de formas de relacionamento. Sem dúvida, não é fácil, um grande exercício de superação.

Todavia, encontramos em texto do espírito Batuíra um comentário muito real:

“Companheiros transfigurados em desafetos integram o quadro natural de nossas provas. Tenhamos coragem e suportemo-los. Decerto não será possível beijar-lhes as mãos quando se voltem contra nós, mas podemos orar por eles, tolerar-lhes as investidas, desculpar-lhes em pensamento os ataques e abençoá-los no silêncio de nossas reflexões”.

Referências:

1) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. O evangelho segundo o espiritismo. Cap. X e XI. FEB.

2) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Epístolas de Paulo à luz do espiritismo. Cap. 6. Matão: O Clarim.

3) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Batuíra. Mais luz. Cap. Ante o futuro. São Bernardo do Campo: GEEM.

(Foi presidente da USE-SP e da FEB)