TOLERÂNCIA E RESPEITO

Warwick Mota

A diversidade religiosa é uma das marcantes características culturais que assinala a humanidade. São milhares de denominações que definem religiões e seitas, reunindo, em todos os pontos da Terra, seguidores de todos os credos.

Essa pluralidade de crenças, em conjunto com a diversidade étnica, torna as relações entre os povos ainda mais complexas, sendo responsável por inenarráveis conflitos que envolvem o homem desde os primórdios.

Recentemente o Rio de Janeiro foi palco de um episódio de grande desrespeito e intolerância religiosa, com agressões verbais e apedrejamento de uma criança de apenas onze anos, conforme relata a revista Istoé, em nota cujo título é “Pedrada do preconceito” (1).

Neta de espírita e filha de evangélica, a estudante Kayllane Campos tem em sua casa uma amostra da saudável tolerância religiosa que existe no Rio de Janeiro, desde que o candomblé, vindo da África, ancorou no bairro carioca da Saúde em 1886 e nele abrigou os primeiros cultos organizados por Mãe Aninha, congregando diversas religiões. Nada tem a ver com a tradição do Rio de Janeiro, portanto, as covardes agressões que a adolescente Kayllane, 11 anos de idade, sofreu na semana passada devido à sua fé. Ela foi apedrejada por dois supostos evangélicos quando saía de um culto de candomblé, e novamente se tornou vítima de violência, dessa vez verbal, quando chegava ao IML para exame de corpo de delito – “macumbeira, macumbeira, vá queimar no inferno”, gritavam insistentemente algumas pessoas. “Quem tacou pedra é vândalo que se esconde atrás da palavra de Cristo”, diz Karina Coelho, a evangélica que é mãe da praticante do candomblé Kayllane. “Eu condeno as pessoas que feriram minha filha”. 

O que leva o homem a manifestar esse comportamento? Por que a diversidade de credos paradoxalmente levanta contendas, quando as religiões deveriam ter, por princípios fundamentais, a ética da tolerância, a caridade, o respeito, o amor fraterno, a compreensão e a paz?

As contendas político-religiosas são antigas, e a história registra perseguições implacáveis, desrespeito aos direitos mais básicos do homem e execuções cruéis, como as relatadas no Antigo Testamento, que marcam a rivalidade entre os profetas de Baal e Elias(2). Em todos os momentos da história da humanidade está presente a concepção dualística, que tenta estruturar o mundo à semelhança de uma balança que oscila na eterna batalha entre o bem e o mal, ou entre o mito de Satã e Deus.

A Idade Média é pródiga na propugnação dessa ideia, e as cruzadas representam um marco desse pensamento, pois registram episódios sórdidos, como o impiedoso extermínio dos cátaros ou albigenses, que deixou marcas atrozes de uma perseguição insana, fundamentada nos interesses e preconceitos da Igreja antiga, a qual definiu o catarismo como heresia maniqueísta.

São muitos os episódios de intolerância religiosa ocorridos no período que compreendeu a Idade Média, culminando com o Tratado de Paz de Westphalia (região do norte da Alemanha) que veio laureado por um antigo princípio: cujus regio, eius religio (quem tem a região tem a religião). Esse princípio marca a assinatura do Tratado, ocorrido em 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, conflito que, por sua vez, teve por estopim a rivalidade política existente entre o Imperador Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico (católicos) e as cidades-Estado comerciais protestantes (luteranas e calvinistas) do norte da Alemanha, que fugiram ao seu controle.

A Paz de Westphalia garantiu, portanto, o direito de cada Estado manter seu regime e religião, sem interferência externa.

Esses acontecimentos, entretanto, não encerram os episódios de intolerância, embora tenham estabelecido o princípio de tolerância e liberdade religiosa.

Incomodado com essa questão, o filósofo jusnaturalista inglês, John Locke (1632 – 1704) resolve, em 1689, publicar uma carta acerca da intolerância (3), quando passa a defender a tolerância religiosa a partir da separação de Estado e Igreja, esclarecendo, de forma irrefutável, qual é o principal distintivo de uma verdadeira igreja, bem como o do verdadeiro homem de bem, digno de ser chamado cristão:

Se um homem possui todas aquelas coisas (bens materiais), mas lhe faltar caridade, brandura e boa vontade para com todos os homens, mesmo para com os que não forem cristãos, ele não corresponde ao que é um cristão. 

E continua Locke, a nos ensinar acerca da tolerância religiosa:

Quem for descuidado com sua própria salvação dificilmente persuadirá o público de que está extremamente preocupado com a de outrem. Ninguém pode sinceramente lutar com toda a sua força para tornar outras pessoas cristãs, se não tiver realmente abraçado a religião cristã em seu próprio coração. Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor (4).

Os ensinamentos de John Locke corroboram com o pensamento de Allan Kardec, no resgate à aplicação da tolerância e do respeito, conforme lecionou o Mestre Jesus.

Fundamentado na ética do amor, que marca a mensagem do Cristo, o Codificador realça, com o ensino dos Espíritos, na mais pura acepção, o significado valorativo de tolerância e respeito, em O Livro dos Espíritos, quando fala da Lei de Igualdade (5). Esta Lei estabelece respeito como sendo uma atitude que consiste em não prejudicar alguém ou alguma coisa, evocando, assim, a regra de ouro que deveria nortear as relações entre os homens:

822. Sendo iguais perante a lei de Deus, devem os homens ser iguais também perante as leis humanas?

“O primeiro princípio de justiça é este: Não façais aos outros o que não quereríeis que vos fizessem”.

O mestre lionês não apenas teoriza, mas exemplifica tolerância e respeito, ao superar com grandeza os ataques feitos ao Espiritismo, soprando, para bem distante, as cinzas do Auto de Barcelona, aconselhando-nos (6):

O Espiritismo se dirige aos que não creem ou que duvidam, e não aos que têm fé e a quem essa fé é suficiente; ele não diz a ninguém que renuncie às suas crenças para adotar as nossas, e nisto é consequente com os princípios de tolerância e de liberdade de consciência que professa. Por esse motivo não poderíamos aprovar as tentativas feitas por certas pessoas para converter às nossas ideias o clero, de qualquer comunhão que seja. Repetiremos, pois, a todos os espíritas: acolhei com solicitude os homens de boa vontade; oferecei a luz aos que a procuram, porque com os que creem não sereis bem-sucedidos; não façais violência à fé de ninguém, muito mais quanto ao clero que aos seculares, porque semeareis em campos áridos; ponde a luz em evidência, para que a vejam os que quiserem ver; mostrai os frutos da árvore e deles dai de comer aos que têm fome e não aos que se dizem saciados.

Ao tratar da Constituição Transitória do Espiritismo (7), Kardec aproveita para enfatizar o tema respeito e tolerância, exprimindo argumentos que marcam a robustez da Doutrina Espírita:

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da moral espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Fica-nos claro, portanto, que a tolerância exige o respeito à regra de ouro presente na Questão 822 de O Livro dos Espíritos, mas entendemos que ela não é suficiente por ter características de uma virtude passiva: é necessário ir além do tolerar. É preciso amar o próximo como recomenda Jesus, e romper com os limites que estabelecemos para apenar alguém, como estabelece Pedro, ao perguntar ao Mestre: “Quantas vezes devo perdoar meu irmão? Sete vezes?”.           

Sabemos que o excesso de tolerância leva à indiferença e a ausência da tolerância leva à intolerância, mas, quando respeitamos o próximo, nós o amamos, e o amar é ativo, pois nos convida a romper os limites, conforme ensina Jesus: “Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas” (8).           

Cumprir a primeira milha é não fazer o mal ao próximo, cumprindo nossa obrigação de cristão. Cumprir a segunda milha consiste em amar o próximo para alcançar a elevação.

 

Referências:

  1. Revista Istoé – 24 de junho de 2015, nº 2377, Ed. Três
  2. A Bíblia de Jerusalém – 1º Reis 18: 1/40 – Edições Paulinas
  3. LOCKE, John – Coleção “Os Pensadores” – Abril Cultural – pág. 03-39
  4. Idem LOCKE, John
  5. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos – Feb
  6. KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863 (pág. 367) – Feb
  7. KARDEC, Allan. (Revista Espírita 1868, pag. 515) – Feb
  8. A Bíblia de Jerusalém – Mateus 5, vv.41 – Edições Paulinas.

Artigos Internet

  1. Dossiê Intolerância Religiosa – http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/
  2. A nova ordem global – http://educaterra.terra.com.br/vizentini/artigos/artigo_75.htm

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Transcrito de: “Brasília Espírita”, GEABL, no.198, janeiro-fevereiro de 2016, p.3.