Resgates da História do Espiritismo na França. I. Problemas da “Sociedade Anônima”

Resgates da História do Espiritismo na França. I. Problemas da “Sociedade Anônima”

Antonio Cesar Perri de Carvalho (*)

Os livros e periódicos espíritas brasileiros, trazem informações superficiais sobre o desenvolvimento do Espiritismo na França logo após a desencarnação de Allan Kardec, não necessariamente fundamentadas em pesquisas em fontes francesas e com replicagens de informações. Este cenário se altera com as facilidades da internet, com acesso direto a bibliotecas, coleções digitais de periódicos e de documentos. E, sem dúvida, as viagens internacionais tornaram-se mais fáceis.

Recentemente, têm surgido obras que resgatam cenários do Espiritismo na França ou, para o contexto da literatura mais divulgada no Brasil, de certa forma muito institucionalizada, podemos dizer que se está reescrevendo muitos episódios com base em fatos e documentos. Entre as produções recentes, citamos: Em Nome de Kardec, de Adriano Calsone1; Revolução Espírita: a teoria esquecida de Allan Kardec, de Paulo Henrique de Figueiredo2; O legado de Allan Kardec, de Simoni Privato Goidanich3, e o vídeo documentário “O espiritismo à francesa. A derrocada do movimento espírita francês pós-Kardec”4, com vários entrevistados. Há também edições digitais efetivadas pelo site Autores Espíritas Clássicos, com traduções de publicações francesas do século XIX.

Com base nestas obras pode-se conhecer melhor as dificuldades vivenciadas pelos seguidores e pela viúva de Allan Kardec, após a desencarnação deste em 1869. Importante contribuição foi a divulgação da brochura Beaucoup de lumière, de Berthe Fropo (Paris, 1884)5. Esta passou despercebida até a Biblioteca Nacional da França digitalizá-la e colocá-la ao alcance de todos. Traduzida como Muita luz é um subsídio precioso para a melhor compreensão dos percalços para a propagação do Espiritismo após a desencarnação do Codificador. Berthe Fropo aborda o ponto crucial do desvirtuamento doutrinário ocorrido no movimento espírita francês pós-Kardec, apresentando nomes dos que não agiam fielmente ao Codificador, dados em letras e cifras, já que o caso estava envolto em uma grave “questão financeira”. Seu livro é uma espécie de dossiê, um libelo público contra os dirigentes do Espiritismo de então e um apelo para os "espíritas sinceros" para, no discurso da autora, não aceitarem as ações dos “confrades desleais”. A autora destaca Pierre-Gaëtan Leymarie, editor-chefe da Revista Espírita, e também, na prática, o "chefe" da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, embora a presidência fosse formalmente ocupada pelo Sr. Vautier, que também ocupava o cargo de tesoureiro da instituição. O apelo de Fropo, em oposição a Leymarie e outros, apontando atividades das mais nocivas aos ideais do Espiritismo, minando-o pela base, culmina na fundação de uma nova instituição, a União Espírita Francesa, e do jornal Le Spiritisme que representaria a "autêntica Doutrina dos Espíritos".5

Gabriel Delanne e Berthe Fropo assumiram, respectivamente, a presidência e a vice-presidência da União Espírita Francesa. Houve estímulo em mensagens assinadas pelo espírito Allan Kardec, obtidas em várias sessões mediúnicas realizadas na residência da viúva do Codificador, em Villa Ségur. Com a concordância de Amélie Boudet, Gabriel Delanne e Berthe Fropo é lançado um plano doutrinário para se revitalizar a divulgação das obras de Kardec, que havia sido comprometida por Leymarie, que agia sob a influência de outros pensamentos, como a do Roustainguismo e mais intimamente a da Teosofia de Madame Blavatsky e do Coronel Olcott.5

Oportuna pesquisa, El legado de Allan Kardec, de Simoni Privato Goidanich foi editada e lançada pela Confederação Espírita Argentina, em Buenos Aires, em 2017. Em março de 2018 a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo lançou a edição em português da referida obra.3 Simoni Privato Goidanich trata dos momentos significativos dos 10 anos após o lançamento de O livro dos espíritos; os papéis desempenhados por Léon Denis e Gabriel Delanne e o relacionamento de ambos com Kardec; os episódios sobre as primeiras edições francesas de A gênese; e a desencarnação do Codificador. Em seguida, aborda as questões legais sobre o nome e o pseudônimo de Kardec; a fundação da Sociedade Anônima para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec; comenta o chamado “o ano terrível” (1872), relacionado com o lançamento da 5a edição de A gênese designada como “revisada, corrigida e aumentada”; o “processo dos espíritas” envolvendo Leymarie; os cerceamentos inflingidos à Amélie Boudet e sua desencarnação; a queima de arquivos e documentos da viúva de Kardec; o alerta do biógrafo de Kardec, Henri Sausse – “Uma infâmia” – apontando 126 alterações de texto na 5a edição de A gênese; as nefastas deturpações executadas por Leymarie em instituições e na Revista Espírita; as lutas e propostas renovadoras de Gabriel Delanne e León Denis e a fundação da União Espírita Francesa.

No livro de Simoni ficaram evidentes as alterações de propósitos da Sociedade Anônima para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec, depois transformada por Leymarie em Sociedade Científica do Espiritismo, e, também na linha editorial da Revista Espírita: “as páginas estavam cada vez mais ocupadas com artigos sobre teosofia […] Estabeleceu-se um vínculo da Sociedade Teosófica com a Sociedade de Estudos Psicológicos e a Sociedade Anônima para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec”.3 No contexto de deturpações e polêmicas, as edições francesas de A Gênese, a partir da 5a edição de 1872 (aquela “revisada, corrigida e aumentada”) é que foram autorizadas traduções para diversos países, por Leymarie – como redator-chefe e diretor da Revue Spirite (1870 a 1901), gerente da Librairie Spirite (1870 a 1897) e presidente da Sociedade Anônima -, inclusive para o Brasil, primeiramente para Joaquim Carlos Travassos em 1875, e depois para Bezerra de Menezes, como presidente da FEB, em 1897.

Por outro lado, Simoni mostra que o pioneiro e líder espanhol José María Fernández Colavida traduziu e publicou a 2a edição de A Gênese, de 1868, em Barcelona (Espanha), mantendo-se fiel à edição de Kardec.3

Simoni comprova que até a desencarnação de Kardec ocorreram quatro edições de A Gênese, e que um único exemplar deste livro foi depositado legalmente durante a existência física de Allan Kardec na Biblioteca Nacional da França. Portanto, o Codificador não modificou o conteúdo da obra. Na época, o Ministério do Interior fiscalizava as publicações, pois a França vivia momentos políticos tensos durante o reinado de Napoleão III.3

(O artigo prossegue em edição próxima)

(*) – Foi presidente da FEB e membro da Comissão Executiva do Conselho Espírita Internacional.

Referências:

1) Calsone, Adriano. Em Nome de Kardec. 1.ed.. Atibaia: Ed. Vivaluz. 2015. 288p.

2) Figueiredo, Paulo Henrique. Revolução Espírita: a teoria esquecida de Allan Kardec. 1.ed. São Paulo: Ed. MAAT. 2016. 640 p.

3) Goidanich, Simoni Privato. O legado de Allan Kardec. 1.ed. São Paulo: USE. 2018. 446p.

4) Lopes, Ery. Espiritismo à francesa. A derrocada do movimento espírita francês pós-Kardec. Vídeo. São Paulo: Luz Espírita. 2018: https://www.youtube.com/watch?v=Ywf8Ftu2eUo

5) Fropo, Berthé. Trad. Lopes, Ery & Miguez, Rogério. Muita luz. Ed.digital Autores Espíritas Clássicos, 2017: http://luzespirita.org.br/leitura/pdf/L158.pdf

Extraído de Revista digital O Consolador:

http://www.oconsolador.com.br/ano12/592/principal.html