Resenha em site acadêmico de livro sobre Espiritismo e Espiritualidade 

Resenha em site acadêmico de livro sobre Espiritismo e Espiritualidade 

Novas perspectivas nos estudos do espiritismo e da espiritualidade

Lucas Baccetto (*) 

http://orcid.org/0000-0003-4367-6839

Universidade Estadual de Campinas – Campinas – SP – Brasil.

SOUZA, André Ricardo; SIMÕES, Pedro; TONIOL, Rodrigo. (org.), Espiritualidade e Espiritismo: reflexões para além da religiosidade. São Paulo: Porto de Ideias, 2017. 244p. pp.,

Resultado de uma mesa redonda do II Simpósio Internacional da Associação Brasileira de História da Religião (ABHR), realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2016, o livro Espiritualidade e Espiritismo: reflexões para além da religiosidade propõe uma atualização dos debates acadêmicos sobre o espiritismo no Brasil e a noção de “espiritualidade”. Organizado por André Ricardo de Souza, Pedro Simões e Rodrigo Toniol, a obra divide-se entre estes dois eixos temáticos: enquanto o primeiro, intitulado “Questões do espiritismo no Brasil”, apresenta uma unificação temática mais concisa relativa ao espiritismo, o segundo, intitulado “A espiritualidade sob olhares que cruzam fronteiras”, privilegia a análise da espiritualidade como categoria analítica e como fenômeno empírico.

O primeiro capítulo, escrito por Marcelo Ayres Camurça, Jacqueline Amaro e André Pereira Neto, aborda a figura de Luiz Mattos, fundador do grupo Espiritismo Racional e Científico Cristão na década de 1910, e seu trabalho de liderança na produção de diferenças em relação ao espiritismo consolidado e às religiões de matriz afro-brasileira. Esse grupo advogava por uma interpretação de cunho científico das obras de Allan Kardec e das experiências e instrumentos espíritas, considerada pelos autores como uma abordagem comum dentro do panorama histórico da época.

O texto em seguida, de autoria de Flávio Rey de Carvalho e Antonio Cesar Perri de Carvalho, debruça-se sobre o contexto da aparição do espiritismo na França e sobre os textos fundadores de Allan Kardec para tentar responder à pergunta já clássica em torno das práticas espíritas: seria o espiritismo uma religião? Retomando a obra de William James, os autores utilizam a divisão “religião institucional” versus “religião pessoal” para analisar os textos de Kardec e argumentam que o espiritismo, para James, só pode ser considerado uma religião quando entendido do ponto de vista pessoal. No entanto, ao recuperarem o desenvolvimento institucional do espiritismo no Brasil e o papel assumido pela Federação Espírita Brasileira (FEB), os autores constatam que existe um desenvolvimento da “religião institucional” do espiritismo.

Na esteira da questão das organizações espíritas no país, o capítulo da socióloga Célia da Graça Arribas centraliza sua análise nas lideranças e autoridades espíritas kardecistas e nas suas relações com a produção da crença. Para isso, a autora constrói tipologias para os tipos de autoridades desempenhadas por sujeitos formadores do que ela denomina de clericato, isto é, “um modo de exercício de um poder religioso a partir de um saber específico”. Assim, as autoridades são repartidas em: 1) institucional, que se articula através da legitimidade de uma posição ocupada pelo agente; 2) carismática, “de caráter emocional” e vinculada à ruptura com a tradição; e 3) intelectual, ordenadora da crença espírita.

Já o capítulo escrito por Pedro Simões, apresentado na sequência, investiga a assistência social praticada por grupos espíritas no estado de Santa Catarina. Por meio de uma pesquisa quantitativa, o texto procura estabelecer perfis e mapear o que identifica como a prática de caridade nessa região. Partindo do lema “fora da caridade não há salvação” como referencial organizador da prática espírita, Simões enquadra o trabalho assistencialista como uma forma institucionalizada da realização de ações de caridade e, portanto, um meio para a salvação espiritual do sujeito caridoso. Desse modo, os atores caracterizam a assistência tanto através da salvação do agente caridoso quanto da incorporação da ação evangelizadora nela, identificando os sujeitos assistidos como necessitados espiritualmente. O autor conclui que a assistência possui características religiosas e endógenas, pois sua prática visa tanto à salvação espiritual daquele que a realiza quanto à integração no interior do grupo espírita daquele que é assistido.

O sociólogo André Ricardo de Souza realiza uma análise do médium João Berbel, praticante de cirurgias espirituais e líder do Instituto Medicina do Além (IMA). Devido ao passado turbulento da prática mediúnica, Berbel relata ao autor o receio existente nas instituições espíritas perante as cirurgias promovidas por ele, sendo a expressão desse receio a não filiação do IMA a alguma outra instituição de maior porte. No entanto, através da comparação com outros dois personagens – o médium João de Deus e a escritora Zíbia Gasparetto -, Souza defende a hipótese de que a legitimação de Berbel diante do movimento espírita decorre da destinação para a caridade dos recursos financeiros obtidos nas cirurgias.

A segunda parte do livro inicia-se com o capítulo escrito pelos antropólogos Emerson Giumbelli e Gustavo Chiesa a respeito dos fenômenos de materialização de espíritos realizados pela médium Anna Prado, entre os anos de 1918 e 1921 em Belém do Pará. Embora presente na segunda seção do livro, o capítulo funciona como um texto de ligação entre as duas partes da obra na medida em que analisa um fenômeno considerado espírita ao mesmo tempo que problematiza as fronteiras entre religião e ciência articuladas na definição do fenômeno. Para tanto, a atenção dos autores direciona-se para os agenciamentos desempenhados pelos objetos nas sessões em questão. De fato, é através dos objetos que as disputas entre as fronteiras da religião e da ciência se fazem latentes, uma vez que os moldes em parafina produzidos pelos espíritos eram entendidos como evidências científicas e religiosas.

O sétimo capítulo é de autoria do antropólogo Rodrigo Toniol e trata do processo de mobilização da categoria espiritualidade como uma questão de saúde. O caso analisado é o da implementação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) na cidade de Severino de Almeida (RS) e, especificamente, da contratação e atuação de dois parapsicólogos no atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no município. Assim, sua abordagem prioriza a maneira pela qual a espiritualidade foi acionada pelos diferentes agentes engajados no projeto, tratando tanto da atuação dos parapsicólogos na condição de experts da espiritualidade quanto de suas práticas clínicas que permitem instituir a espiritualidade.

O capítulo seguinte é escrito pela antropóloga Diana Espírito Santo e aborda as experiências oníricas de visão experimentadas por praticantes da religião afro-cubana Santeria. A chave de análise articulada pela autora concentra-se na questão do sujeito mesmo que sonha. Esta escolha lhe permite pensar os sonhos em sua relação com o processo no qual os espíritos internos – guias espirituais legítimos – são defendidos de espíritos externos relacionados à bruxaria, sendo estes potencialmente maléficos e desestabilizadores para a religião afro-cubana. Considerando que a noção do “eu” em operação entre os adeptos da religião entende os espíritos como potencialidades virtuais para o desenvolvimento da pessoa, os sonhos atuariam, assim, na qualidade de tecnologias de constituição do sujeito. Isso porque, ao desvelarem o mundo dos espíritos através das visões, explicitariam esses dois conjuntos de agentes que se colocariam como possibilidades conflitivas para a identidade. Em um contexto de medo da bruxaria, o sonho assume uma posição na configuração do processo de autorrepresentação do sujeito na sua vida religiosa que, sendo informado por esta, atua como uma espécie de mecanismo de defesa contra a dissolução do “eu” diante da visão e da possessão dos espíritos estranhos ao sujeito.

Por fim, o livro encerra-se com o capítulo escrito pela socióloga Courtney Bender, baseado no trabalho de campo realizado por ela na cidade de Cambridge, em Massachusetts (EUA), entre grupos de praticantes metafísicos das crenças de reencarnação. Através de uma reconstrução das discussões norte-americanas da segunda metade do século XIX, a autora busca compreender como as práticas contemporâneas de reencarnação se encontram ligadas a seu passado histórico, ainda que de modo não consciente por parte dos atores. Dessa forma, é através do acompanhamento do caso de Cathy que a socióloga afirma que as práticas contemporâneas de tomada de conhecimento das vidas passadas não fazem simplesmente uma substituição do tempo histórico por um tempo mítico, mas complexificam essas noções de tempo e história.

De fato, o livro entrega discussões importantes. Na primeira parte, os textos percorrem temas caros ao campo espírita na Academia brasileira – como o papel das lideranças e o confronto entre definições religiosas e científicas. Na segunda, o título em questão dá a tônica dos capítulos: uma ampla variedade de temas que orbitam em torno de diversas noções de espiritualidade, passando desde praticantes metafísicos da crença da reencarnação nos Estados Unidos até políticas assistenciais estatais à dimensão espiritual da saúde da população. São as multiplicidades temáticas e as perspectivas originais da segunda parte que apresentam o maior valor da obra, introduzindo novidades teóricas e temáticas importantes ao campo da Antropologia.

Assim, o ponto de maior fôlego criativo se dá no rastro deixado pelo subtítulo, que indica a possibilidade de colocar a religião e a espiritualidade em perspectiva, pensando-as para fora de seus limites aparentes a partir de suas relações com a variedade de campos (ciência, políticas estatais, etc.) presentes nos casos trabalhados. Trata-se de reflexões para além da religiosidade.

REFERÊNCIAS:

SOUZA, André Ricardo; SIMÕES, Pedro. Espiritualidade e Espiritismo: reflexões para além da religiosidade. São Paulo: Porto de Ideias, 2017, 244pp.

[ Links ] Recebido: 11 de Maio de 2018; Aceito: 22 de Julho de 2019.

(*) Contato:lucas.baccetto@gmail.com Mestrando em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil.

DO SITE DA SCIELO (copie e cole):

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872019000200222&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt