Os Evangelhos: cronologia e idioma

Os Evangelhos: cronologia e idioma

Antonio Cesar Perri de Carvalho

Depois que elaboramos o livro Cristianismo nos séculos iniciais. Análise histórica e visão espírita1 e com as subsequentes palestras que proferimos notamos reações de surpresa a respeito dos registros sobre a cronologia e sobre o idioma original em que os evangelhos foram redigidos.

Vários confrades se referem à obra Paulo e Estêvão2 com a colocação de que Emmanuel teria se referido ao Evangelho de Mateus. Esse comentário merece análise cuidadosa sobre o porquê do Autor Espiritual utilizar genericamente a palavra “evangelhos”, e a prudência de empregar as expressões “anotações de Levi”, “cópias do Evangelho” e “pergaminhos do evangelho”. Em nenhum momento anotou Evangelho de Mateus…

O principal autor da Patrística, Eusébio de Cesareia (séc.III-IV), já anotava em na sua obra tradicional História eclesiástica3, sobre o significado de cada um dos quatro Evangelhos. Entre os séculos I e VII, os manuscritos antigos eram escritos em papiro, ainda que por volta do século IV, na maior parte do mundo, o pergaminho tivesse substituído o papiro. Nos primeiros séculos da expansão da Igreja cristã, desenvolveu-se o que se chamou de “textos locais” do Novo Testamento.4 Então há uma diferença entre anotações, escritos em papiro ou pergaminho e a versão consolidada dos Evangelhos. As pesquisas documentais e arqueológicas das últimas décadas reforçam as opiniões de tradicionais pesquisadores bíblicos.

Com base em vários pesquisadores acadêmicos sobre a Bíblia, Russel Norman Champlin4 sintetiza as diversas opiniões de que para os que aceitam a interação Pedro orientando Marcos, o Evangelho de Marcos surgiu na faixa dos anos 64-67 d.C.; o Evangelho de Lucas teria sido escrito entre os anos 60-80 d.C.; o de Mateus após destruição de Jerusalém (70 d.C.); e o Evangelho de João entre 90-100 d.C. O autor citado registra que se reconhece universalmente que Mateus e Lucas usaram o pioneiro Evangelho de Marcos como seu esboço histórico, e que teriam adicionado à narrativa histórica de Marcos muitos ensinamentos de Jesus, pois o Evangelho original continha pouquíssimo desse material. Complementa com o comentário de que os três primeiros evangelhos – sinópticos-, encaram a vida, os ensinamentos e a significação da vida de Jesus do mesmo ponto de vista, em contraste com as observações de João.

Frederico Lourenço5,6, pesquisador e professor de Estudos Clássicos, Grego e Literatura Grega da Universidade de Coimbra, tradutor de várias obras a partir do grego e um dos grandes especialistas de nossa época sobre a Bíblia em versão grega, comenta: “[…] os últimos cinquenta anos trouxeram mudanças decisivas nos estudo dos quatro Evangelhos.” Adiciona que quando Paulo foi sacrificado os únicos textos do Novo Testamento que já tinham sido escritos eram desse apóstolo. “[…] todos os demais textos foram escritos depois da morte de Paulo; nem sequer os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João tinham sido escritos.”

Entre os pesquisadores recentes ligados à História também há o mesmo consenso, como Alain Corbin7 que afirma que o texto mais antigo do cristianismo são as cartas do apóstolo Paulo.

Agora fica mais fácil entendermos porque Emmanuel utilizou palavras cuidadosas para se referir a “anotações do Evangelho”, e Paulo e Estêvão foi redigido nos idos de 1941, antes de muitas pesquisas que viriam à tona. Estas precisam ser valorizadas e não desdizem a redação adotada por Emmanuel. Com relação à época do aparecimento dos Evangelhos, fundamentado em vários autores, registramos que a 1a Epístola aos Tessalonicenses, escrita por Paulo em Corinto no ano 51 d.C., seria o primeiro texto de autoria do Apóstolo e também o texto pioneiro do Novo Testamento.

Em geral é aceita a seguinte cronologia de aparecimento dos Evangelhos: Marcos, provavelmente no ano 64 d.C; Lucas, logo em seguida; Mateus, no ano 70 d.C., e, João, no período entre 90 e 100 d.C.1

Todavia, o Novo Testamento apresenta os evangelhos em ordem de importância ou de uso nas comunidades, e não pela cronologia em que foram elaborados. Foi Agostinho que popularizou a ideia de que Mateus seria o evangelho original e que o de Marcos seria um sumário do mesmo e esta tradição tem sido mantida nas versões do Novo Testamento. E também porque, em geral, considera-se que o evangelho de Mateus teria ascendência sobre os demais em função do arranjo por tópicos, apropriado para instrução; contém a mais completa narrativa; reflete um ponto de vista mais universal; é o mais eclesiástico.4 Face às constatações de que ele foi escrito após Marcos e Lucas fica claro porque tem a narrativa mais completa.

Outra polêmica e que diminui sua importância com as pesquisas recentes é a questão do idioma em que os Evangelhos foram redigidos. Eusébio de Cesareia afirma que Mateus teria escrito “na língua pátria”, porém, posteriormente desenvolveram-se polêmicas sobre essa opinião.3

O registro de que todos os livros do Novo Testamento (Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Epístolas, e Apocalipse), à exceção do Evangelho de Mateus, foram redigidos primeiramente em grego “koiné” se reproduz automaticamente em algumas hostes religiosas. O “koiné” era um idioma popular largamente usado na época por todo o mundo greco-romano e tornava mais fácil a divulgação da Boa Nova, e se abria para o mundo dos gentios que não conheciam o aramaico. Ao tempo de Jesus em todas as cidades principais, incluindo Jerusalém, se falava o “koiné”. Jesus falava o aramaico comum, um dialeto do siríaco; o hebraico clássico já não era uma língua viva. A maior parte das instruções de Jesus foram originalmente entregues no idioma aramaico. Marcos deixou isso claro ao suprir palavras e expressões aramaicas com seus equivalentes gregos.4 Nos textos do Novo Testamento há um emprego variado do “koiné”, sendo “literário” (Lucas e Paulo) e até “menos educado” (Marcos). Os autores dos textos do Novo Testamento não eram gregos e escreveram com alguma influência semita. Os papiros que têm sido descobertos nas últimas décadas confirmam a natureza do grego do Novo Testamento.

Os tradutores modernos têm a vantagem de contar com manuscritos desde o século II, muito diferente do “Textus Receptus” compilado por Erasmo no século XVI que dispunha de manuscritos do século X.4 O estudioso Champlin4 comenta que a tradução da Bíblia do hebraico para o grego, a “Septuaginta”, exerce muita influência sobre o conteúdo e o caráter do Novo Testamento. Muitas citações foram extraídas diretamente dessa obra e não do Antigo Testamento em hebraico. O sentido das palavras se baseiam em ideias hebraicas e não em qualquer elemento distintamente grego.

Essas observações são importantes para se compreender a revisão corrente sobre o idioma da redação original dos textos do Novo Testamento. O historiador Blainey8, por exemplo, é de opinião de que os textos de todos evangelistas teriam sido redigidos em grego. Essa observação é reiterada pelo já citado pesquisador e especialista em grego Frederico Lourenço5,6, da Universidade de Coimbra: “O Novo Testamento teria sido originalmente escrito em aramaico ou hebraico, ideia que, hoje, não tem lugar na discussão crítica sobre o Novo Testamento, em primeiro lugar porque não existem versões de nenhum livro do Novo Testamento em aramaico (ou hebraico); e, em segundo lugar, porque a bibliografia crítica moderna já demonstrou à saciedade que a escrita dos livros do Novo Testamento mostra a cada passo que o texto foi pensado em grego, com múltiplos efeitos semânticos que nascem do próprio vocabulário grego, propiciando não raro jogos de palavras que só funcionam mesmo em grego.”

Num mundo dinâmico e com pesquisas acadêmicas, livres de influências religiosas, torna-se imperiosa a constante atualização nos assuntos ligados à Bíblia que até há pouco eram um tabu intransponível.

Referências:

1) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo nos séculos iniciais. Análise histórica e visão espírita. Cap. 2.4. Matão: O Clarim, 2018.

2) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Paulo e Estêvão. Brasília: Ed. FEB. 2012. 488p.

3) Eusébio de Cesareia, Bispo de Cesareia. Trad. Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria de Cristo. História eclesiástica. Coleção Patrística vol. 15. São Paulo: Paulus. 2014. 508p.

4) Champlin, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol. 1 e 2. São Paulo: Hagnos. 2014.

5) Lourenço. Frederico. Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Vol.1. São Paulo. Companhia das Letras. 2017.

6) Lourenço. Frederico. Novo Testamento: apóstolos, epístolas, apocalipse. Vol.2. São Paulo. Companhia das Letras. 2018.

7) Corbin, Alain (Org.); Lemaitre, Nicole; Thelamon, Françoise; Vincent, Catherine. Trad. Brandão, Eduardo. História do cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. 1a Parte, cap. I e II. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

8) Blainey, Geoffrey. Trad. Capelo Traduções. Uma breve história do cristianismo. 1.ed. Cap. 3. São Paulo: Editora Fundamento Educacional. 2012.

Publicado em:

Revista Internacional de Espiritismo, Ano XCIV, N.6. Julho de 2019.