Os ensinamentos da obra Paulo e Estêvão

Os ensinamentos da obra Paulo e Estêvão

Antonio Cesar Perri de Carvalho

Há 80 anos, em julho de 1942, a literatura espírita foi enriquecida com o lançamento do romance Paulo e Estêvão, a magistral obra psicografada por Francisco Cândido Xavier, de autoria do espírito Emmanuel.1

Esse romance marcante foi psicografado por Chico Xavier ao longo de poucos meses, numa pequena sala, cedida ao médium, da casa do administrador Rômulo Joviano no ambiente bucólico da Fazenda Modelo, em Pedro Leopoldo (MG). Emmanuel concluiu e redigiu a apresentação no dia 08/07/1941.1

Emmanuel detalha Atos e as Epístolas de Paulo focalizando a saga do doutor Saulo de Tarso, autoridade na Lei Mosaica, que ao iniciar seu processo de transformação no Apóstolo do Cristo, foi submetido pelos seus antigos pares e até por seguidores do Cristo, a constrangimentos e dificuldades. Saulo de Tarso era o “vaso preparado” para a espinhosa missão, pois era detentor da chamada “autonomia intelectual” advinda das condições excepcionais de sua preparação, de vivência em três mundos: lar de tradição judaica, cultura helênica da terra natal Tarso, imerso no império romano e detentor da cidadania romana.2

De início, realçamos os objetivos de Emmanuel para a elaboração de Paulo e Estêvão:

“[…] para atingir os fins a que nos propomos, transferindo ao papel humano, com os recursos possíveis, alguma coisa das tradições do plano espiritual acerca dos trabalhos confiados ao grande amigo dos gentios. […] não é nosso propósito levantar apenas uma biografia romanceada. […] Nosso melhor e mais sincero desejo é recordar as lutas acerbas e os ásperos testemunhos de um coração extraordinário, que se levantou das lutas humanas para seguir os passos do Mestre, num esforço incessante. […] Paulo de Tarso foi um homem intrépido e sincero, caminhando entre as sombras do mundo, ao encontro do Mestre que se fizera ouvir nas encruzilhadas da sua vida.”1

A homenagem a Estêvão – primeiro mártir do Cristianismo e vítima do outrora doutor Saulo -, também é esclarecida por Emmanuel: “Outra finalidade deste esforço humilde é reconhecer que o Apóstolo não poderia chegar a essa possibilidade, em ação isolada no mundo. Sem Estevão, não teríamos Paulo de Tarso. […] A contribuição de Estevão e de outras personagens desta história real vem confirmar a necessidade e a universalidade da lei de cooperação. […] sem cooperação, não poderia existir amor; e o amor é a força de Deus, que equilibra o Universo”.1

O sacrifício de Estêvão e o rompimento de Saulo com sua noiva Abigail foram fatores predisponentes para que algum tempo depois capitulasse o destemido perseguidor dos seguidores de Jesus. Episódio ímpar é que teve a honra de ser procurado pelo próprio Jesus: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”1

Paulo, como principal divulgador da mensagem do Mestre, fundou em muitos locais as chamadas igrejas cristãs (ecclesia - local de reunião, atualmente significando “igreja”). O autor espiritual detalha os primeiros labores apostólicos, a fidelidade que o ex-doutor da Lei tinha Moisés, transferindo-a para Jesus, não aceitando as interferências judaizantes e as polêmicas sobre limites à abrangência do trabalho e da difusão da mensagem da Boa Nova.2

[…] Outra ação histórica em termos de registro do Cristianismo primitivo foram as Epístolas e, numa meditação noturna, recebe a seguinte orientação: “Não te atormentes com as necessidades do serviço. É natural que não possas assistir pessoalmente a todos, ao mesmo tempo […] Poderás resolver o problema escrevendo a todos os irmãos em meu nome; […] Doravante, Estêvão permanecerá mais aconchegado a ti, transmitindo-te meus pensamentos…”1

Daí o título da obra de Emmanuel, destacando o Apóstolo e o primeiro mártir do Cristianismo, Estêvão, na posição de seu orientador espiritual para a difusão do Cristianismo. Paulo, nos momentos mais adversos de sua vida, nunca deixou de divulgar a mensagem de Jesus. Mesmo nos momentos em que esteve preso, redigiu Epístolas e orientou Lucas na elaboração de Atos dos Apóstolos. Uma das últimas “epístolas da prisão”, a 2a Epístola a Timóteo contém um comentário que resume a vida e ação do apóstolo Paulo: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé”.

Nas Epístolas há referências à prática da mediunidade, realçada por Emmanuel em vários trechos do romance, como: “O mediunismo evangelizado dos tempos modernos é o mesmo profetismo das Igrejas apostólicas”.1

[…] Extremamente significativo é o registro sobre o cenário espiritual da comunidade de Antioquia: “Vivia-se ali num ambiente de simplicidade pura, sem qualquer preocupação com as disposições rigoristas do judaísmo.”

Em outro trecho, anota: “A união de pensamentos em torno de um só objetivo dava ensejo a formosas manifestações de espiritualidade. Em noites determinadas, havia fenômenos de “vozes diretas”. A instituição de Antioquia foi um dos raros centros apostólicos onde semelhantes manifestações chegaram a atingir culminância indefinível. A fraternidade reinante justificava essa concessão do Céu.”1

A nosso ver, na atualidade, há necessidade de se analisar e rever questões como a excessiva formalização e escolarização que ocorrem nos centros espíritas, provocando um certo "engessamento" da mediunidade… Deve haver prudência para a criação de estruturas e atividades que poderiam ser típicas de uma organização administrativa e doutrinária mais complexa. Na realidade, boa parte dos centros não dispõem dos chamados "departamentos" e nem teriam condições de recursos humanos para montá-los.3

Os centros espíritas, sendo menos formais e mais voltados à solidariedade fraterna, devem ter preocupações a começar do ambiente dentro da equipe de trabalho e na recepção aos iniciantes e interessados. O imprescindível é que se abram espaços para "treinamentos em serviço" e para ações de integração dos colaboradores, contando-se com uma visão de conjunto do próprio centro espírita. A colaboração é uma tônica repetida em vários momentos do romance histórico.

Entre as práticas interessantes de nosso movimento, destacamos a experiência de Mário da Costa Barbosa (1936-1990), que conhecemos pessoalmente. A vivência dele está registrada no livro Conviver para amar e servir4, editado pela FEB, durante nosso período como presidente da instituição. Nessa obra há fundamentação no atendimento à comunidade na Casa do Caminho, nos exemplos de Paulo Tarso e nos seus relacionamentos com os agrupamentos cristãos. A metodologia desenvolvida de espaço de convivência, criatividade e educação, tem sua espinha dorsal numa visão que perpassa e é aplicável a todas as atividades do centro espírita, sem ser circunscrita apenas a uma área de atuação.

Outra análise sobre labores registrados em Paulo e Estêvão tem sido feita pelo sociólogo André Ricardo de Souza, ao considerar que a experiência poderia ser considerada “uma expressão socioeconômica do cristianismo”: “formação de um empreendimento de economia solidária para que as pessoas acolhidas pela comunidade cristã, já curadas e refeitas, pudessem trabalhar de modo a buscarem, tanto quanto possível, a emancipação econômica de todo aquele grupo que abrangia cerca de cem pessoas”.5

Em nossos dias, são necessárias análises sobre os rumos do movimento espírita, sendo sugestivo o rompimento de Paulo com o farisaísmo e a opção pela simplicidade, como um repensar sobre o depoimento: "Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns. E eu faço isto por causa do evangelho, para ser também participante dele" (1 Coríntios 9,22-23).

A ideia de Paulo de se apresentar-se “como fraco” e “ser participante” desperta nossa percepção para a necessidade de se atuar em todas as faixas sociais. Com sua sólida formação cultural, ele não se posicionou como elite, despojou-se de privilégios e atendeu às necessidades da gentilidade, desde homens simples do povo, até as autoridades, mas dispensando a todos o amor fraterno.

As experiências aqui expostas sugerem alguns repensares do centro espírita, projetando-o envolvido e coerente com a comunidade onde se localiza; com atenção ao público alvo; a simplicidade do cristianismo original; a criação de espaços integrados de convivência, criatividade, educação e ativa colaboração; independência de favores governamentais, políticos e financeiros, e, desenvolvendo uma sobrevivência socioeconômica coerente com as propostas ético-morais inspiradas no cristianismo.

Em síntese, é significativa a frase de Kardec: “A bandeira que desfraldamos bem alto é a do Espiritismo cristão e humanitário, […] aí é que está a âncora de salvação, a salvaguarda da ordem pública, o sinal de uma era nova para a humanidade.”6

Referências:

1) Xavier, Francisco Cândido. Pelo Espírito Emmanuel. Paulo e Estêvão. Brasília: FEB. 2012. 488p.

2) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Epístolas de Paulo à luz do Espiritismo. Matão: O Clarim. 2016. 174p.

3) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Centro espírita. Prática espírita e cristã. São Paulo: USE. 2016. 196p.

4) Sarmento, Helder Boska de Moraes et al (Orgs.). Conviver para amar e servir. Brasília: FEB. 2013. 166p.

5) Souza, André Ricardo de. A economia solidária no livro Paulo e Estêvão. Acesso em: http://grupochicoxavier.com.br/a-economia-solidaria-no-livro-paulo-e-estevao/;

6) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. O livro dos médiuns. Item 350. Brasília: FEB. 2003.

Síntese de artigo da Revista digital da FEEES A Senda – link (copie e cole): https://www.feees.org.br/…/a-senda-novembro-dezembro-2022/