O impacto emocional no fechamento das casas espíritas

Matéria para reflexão e estudo:

Entrevista

O impacto emocional no fechamento das casas espíritas

Eliana Haddad

Atuando como diretor do Departamento de Atendimento Espiritual no Centro Espírita, da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, o psicólogo Fernando Porto analisa este momento desafiador da história da humanidade. Ele destaca a importância da atenção dos dirigentes e lideranças espíritas sobre os impactos que sofrerão a participação e frequência nas casas espíritas e fala sobre as mudanças dos hábitos e os problemas emocionais e espirituais ocasionados pela crise. Acompanhe a entrevista.

1 – Como você analisa essa experiência do fechamento dos centros espíritas?

Fernando – Essa questão nos permite uma inadiável reflexão sobre o verdadeiro papel do centro espírita perante a sua comunidade e a sociedade. O saudoso filósofo Herculano Pires já havia nos alertado que “se os espíritas soubessem o que é o centro espírita, quais são realmente a sua função e a sua significação, o espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra”. A convivência autêntica se estabelece pela comunhão de pensamentos guiados a um propósito comum. A quantidade de pessoas não garante conexão com a espiritualidade superior, mas a ‘afinidade e sintonia’ no verdadeiro bem. Será que nós temos valorizado e aproveitado nosso tempo de convivência no centro espírita, ou buscado frequentá-lo apenas em benefício próprio? Ele tem sido um espaço para estudo e reforma íntima ou para uma atitude passiva, conforme hábitos religiosos antigos? Em relação ao fechamento das instituições, é preciso considerar a necessidade de respeitar as autoridades sanitárias perante a pandemia, e considerar a situação de cada região, para que não nos tornemos agentes de perturbação.

2 – Muitas atividades realizadas antes presencialmente estão sendo substituídas por lives, estudos online, encontros virtuais. Isso é bom ou ruim para nossa evolução?

Fernando – O benfeitor Emmanuel na obra Paulo e Estevão nos ensina que “o valor da tarefa não está na presença pessoal do missionário, mas no conteúdo espiritual do seu verbo, da sua exemplificação e da sua vida”. Assim como o ‘pastor conhece suas ovelhas’, o dirigente espírita precisa estar conectado às necessidades do público frequentador do centro espírita e, se os dispositivos tecnológicos são as ferramentas disponíveis no momento, cabe aos responsáveis se inteirarem de seu funcionamento e disponibilizarem alternativas para o público espírita. Nem a tecnologia ou a atividade presencial são os fatores determinantes para nossa evolução. Se não houver a internalização dos princípios espíritas e a sua aplicação na vida prática, de nada adianta o uso da tecnologia mais avançada disponível, pois esta apenas representa um recurso ou instrumento, dependendo a nossa evolução do seu bom uso ou não.

3 – O que traz mais danos emocionais? Este isolamento ou vivermos afastados de nós mesmos, voltados mais para os aspectos exteriores da vida?

Fernando – Existem duas atitudes possíveis por parte do ser humano diante do sofrimento. Enquanto uma parte das pessoas aproveitará a situação de isolamento social para uma reflexão sobre seu estilo de vida, suas prioridades e seus relacionamentos, outros, por já carregarem em seu íntimo conflitos e transtornos psicológicos, se encontrarão em uma condição de maior vulnerabilidade. Há uma crescente preocupação que fatores como decréscimo do poder aquisitivo, isolamento social, as restrições no acesso aos tratamentos de transtornos mentais e suporte religioso agravem os índices de depressão e suicídio. É difícil prever qual realidade encontraremos no pós-pandemia. Em um cenário otimista, as pessoas terão se adaptado a um novo modo de vida, no qual a realidade virtual suprirá as necessidades mais imediatas; no cenário pessimista, haverá um comprometimento físico e mental em parte da população, e precisaremos estar preparados para o acolhimento fraterno dos nossos irmãos mais necessitados de auxílio. A fé no futuro e a confiança em Deus são condições indispensáveis, em quaisquer circunstâncias para a superação desses transtornos.

4 – Como o centro espírita influencia no equilíbrio emocional de seus frequentadores e trabalhadores?

Fernando – Chegará um dia em que reconheceremos em toda a parte a presença de Deus. Que não se atribua ao dirigente espírita ou ao médium, pessoas falíveis, aquilo que nos compete realizar, afinal o reino dos céus nasce de fato nos corações. O centro espírita tem por missão atender à necessidade geral dos indivíduos, particularmente aos espíritos combalidos pelas angústias do mundo, aos pobres em espírito destituídos do esclarecimento superior e ainda aos necessitados do pão material e espiritual. E é para esses que ele se faz mais necessário.

5 – O afastamento temporário das casas espíritas nos faz pensar o quanto podemos desenvolver relações de dependência emocional com elas. Como podemos avaliar isso?

Fernando – O papel essencial do centro espírita deveria ser o de preparar os espíritas para não dependerem dele. Em outras palavras, em vez de simplesmente enxugarmos as lágrimas, precisamos ensinar o nosso semelhante a sorrir, reconhecer-se como ser imortal, estimular o desenvolvimento de suas potencialidades. A instituição espírita, como qualquer outra, é um meio e não um fim em si mesma.

6 – Você acha que podemos acabar enxergando como desnecessárias as atividades presenciais do centro espírita?

Fernando – O homem é um ser social e tem necessidade de afeto, de demonstrá-lo por meio de gestos e de receber o calor humano da mesma forma. O centro espírita não somente é a nossa escola e oficina de trabalho, como é um espaço que oferece uma atmosfera espiritual saneada para a realização de determinadas atividades específicas. Lembremos da reunião mediúnica na assistência aos desencarnados, das crianças ávidas de afeto e educação, dos idosos reféns da própria solidão, das pessoas que estão em desespero, ou em busca de um lugar onde encontrem paz, pois vivem o conflito constante em seus lares. Alguns podem até pensar que o centro espírita é totalmente desnecessário, pelo menos até o momento em que os problemas baterem em sua porta.

7 – Em sua opinião o que deveriam fazer os dirigentes espíritas ao retornarem as atividades do centro espírita?

Fernando – Deveríamos inicialmente refletir se é conveniente abrir de imediato, mesmo com a autorização das autoridades e pensar de que modo isso será feito e em quais condições as atividades serão desenvolvidas e as novas ações a serem implementadas. Há um ponto essencial a ser debatido no movimento espírita, um aspecto ‘positivo’ da crise que vivemos. Os objetivos principais do espiritismo são o combate à incredulidade e ao fanatismo, a superação das chagas humanas, o egoísmo e o orgulho. Será que o modelo atual vigente, baseado no método catequético no qual o frequentador é colocado em uma postura passiva e cômoda tem nos levado aos resultados que buscamos? Logo, o tempo de que dispomos para a convivência no centro espírita precisa ser suficientemente significativo, marcante e enriquecedor, fundado em relações autênticas, no estudo e na prática legitimamente espíritas. O nosso compromisso exige de nós ir ao encontro do sofrimento do outro, praticar a caridade, estimular os jovens para que se envolvam com centro espírita, compartilhando responsabilidades. A sabedoria diz que não se aplicam velhas soluções para problemas novos. Em outras palavras, o centro espírita necessita se transformar em ‘universidade do espírito’ para formar o cidadão do futuro sintonizado com a regeneração a ser instaurada no mundo.

8 – Sendo a religiosidade uma das caraterísticas do ser humano, você acredita que estamos passando por alguma mudança nessa relação de transcendência?

Fernando – Para que a religiosidade caminhe na direção da verdadeira espiritualidade, é fundamental a mudança de paradigma em relação à nossa compreensão sobre religião, entendendo-a como moralidade e comunhão de pensamentos, sem submissão aos aspectos exteriores. A religiosidade se baseia essencialmente no serviço ao próximo e na consciência reta do dever cumprido. Portanto, para que haja a mudança nessa relação de transcendência, precisamos abrir nossos corações para o amor, estabelecermos uma conexão autêntica com o Criador e nos tornarmos instrumentos de sua vontade pelo bem de todos. Somente assim se cumprirá a promessa do Cristo de que “haverá um só rebanho e um só pastor”.

9 – Quais os nossos maiores desafios emocionais e espirituais no momento?

Fernando – Quando as emoções se desestruturam, ocorrem as ‘perturbações neuróticas’, base de muitos transtornos mentais. As emoções negativas se ‘apoderam’ de nós de uma maneira involuntária. Infelizmente, a maioria das pessoas tem uma falsa impressão de que somos vítimas e não temos responsabilidade alguma sobre o processo. Acreditamos que a culpa pelo que sentimos se deve a fatores externos, aos acontecimentos da vida, ou aos atos e palavras das outras pessoas com as quais convivemos. Por outro lado, em um outro extremo, há aqueles que se culpabilizam e se martirizam, em um processo autodestrutivo, pelos acontecimentos considerados ‘negativos’, segundo seus pontos de vista. O primeiro cuidado a ser tomado é aprender a se responsabilizar pelos próprios sentimentos, combater a rebeldia que nos impede de aceitar a ordem natural das coisas. Faz-se necessário a autoaceitação, porque podemos estabelecer 7 exigências excessivas além da nossa capacidade. O autoconhecimento é o nosso maior desafio, pois ele possibilita a compreensão da exata dimensão de nossos compromissos, da nossa missão aqui na Terra. E, a partir de então, adotar a postura do equilíbrio, na emotividade e no pensamento, na palavra e na ação. Eduquemos nossa vida mental, evitando os fatores causadores de desequilíbrio e buscando a sustentação na meditação, na oração, na leitura edificante e, principalmente, cultivando pensamentos positivos e sentimentos elevados para obtenção de uma saúde mais plena e duradoura.

10 – O que diria para os que estão aflitos, querendo voltar à rotina das palestras, passes e estudos nos centros espíritas?

Fernando – É preciso que sobesem os prós e contras, tenham consciência dos riscos, procurem se informar em fontes fidedignas e sigam os procedimentos de segurança indicados. Pensamos que, se o frequentador pertencer aos grupos de risco, ele deve evitar se expor de modo desnecessário. Quanto aos demais, caso se sintam equilibrados, ponderem a pertinência ou não da participação presencial. O espiritismo é uma doutrina que promove a autonomia, a autoconsciência e a responsabilidade dos atos de cada um a partir de sua livre escolha.

Texto publicado no jornal Correio Fraterno – edição 493 – maio/junho 2020 – p 4 e 5.