O ENSINO MORAL LEGADO POR JESUS, OS ROMANCES ESCRITOS POR EMMANUEL E NÓS

Flávio Rey de Carvalho (*)

No início da introdução de O evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec delimitou que é possível dividir as matérias contidas nos Evangelhos em cinco partes, destacando-se, entre elas, o “ensino moral”, por não ser objeto de controvérsias e se manter inatacável. Conforme ele explicou:

 

Diante desse código divino a própria incredulidade se inclina; é terreno onde todos os cultos podem se reencontrar, a bandeira sob a qual todos podem se abrigar, quaisquer que sejam as suas crenças, porque jamais foi objeto de disputas religiosas, sempre e por toda parte levantadas pelas questões do dogma; aliás, discutindo-as, as seitas encontrariam aí sua própria condenação, porque a maioria está mais interessada na parte mística do que na parte moral que exige a reforma de si mesmo. Para os homens em particular é uma regra de conduta abrangendo todas as circunstâncias da vida, privada ou pública, o princípio de todas as relações sociais fundadas sobre a mais rigorosa justiça; é, enfim, e acima de tudo, o caminho infalível para a felicidade esperada, um canto do véu levantado sobre a vida futura.

 

Mais adiante no texto, destacando o importante papel desempenhado pelos espíritos no restabelecimento do sentido verdadeiro do ensino moral legado por Jesus, Kardec vaticinou:

 

Graças às comunicações estabelecidas, de hoje em diante de um modo permanente, entre os homens e o mundo invisível, a lei evangélica, ensinada a todas as nações pelos próprios Espíritos, não será mais letra morta, porque cada um a compreenderá, e será incessantemente solicitado a praticá-la pelos conselhos de seus guias espirituais. As instruções dos Espíritos são verdadeiramente as vozes do céu que vêm esclarecer os homens e convidá-los à prática do Evangelho.

 

É no cumprimento dessa previsão feita por Kardec que se insere a obra do médium Francisco Cândido Xavier (1910-2002), que, sob a supervisão do Espírito Emmanuel, publicou, enquanto encarnado, 427 livros psicografados, abrangendo vasta gama de autores espirituais. Entre estes, destaca-se o próprio Emmanuel, autor de mais de uma centena de livros que tocam, sobretudo, temáticas ligadas à difusão e à compreensão do evangelho à luz do espiritismo. Sua produção é bastante ampla, abrangendo desde a elaboração de obras compostas de comentários a trechos do Novo testamento - como, por exemplo, os títulos que compõem a Série fonte viva -, livros de perguntas e respostas – entre eles, O consolador (1940) -, textos ensaísticos – como A caminho da luz (1938), entre outros -, até a escrita de cinco romances históricos, em torno dos quais se centra o presente artigo.

São eles: Há dois mil anos (1939) – centrado no século I -, Cinquenta anos depois (1939) – retratando fatos ocorridos no século II -, Paulo e Estevão (1941) – detalhando acontecimentos que se deram no século I -, Renúncia (1942) – abrangendo vivências que perpassaram a segunda metade do século XVII e o início do XVIII – e Ave, Cristo! (1953) – envolvendo experiências de vida ligadas ao século III. Esses cinco livros, em termos centrais, têm o objetivo de nos sensibilizar para a importância de se assimilar a essência do ensino moral, legado por Jesus, no nosso proceder cotidiano. Neles são narradas histórias de vida, que retratam, em termos práticos e bastante detalhados, como se deram as relações de personagens “reais” – cada qual conforme o seu grau de amadurecimento e conscientização espiritual – com os princípios morais cristãos.

Por meio da evidenciação dessas relações, Emmanuel objetivou apresentar exemplos de vivências, para nos servir de roteiro e fonte de inspiração, para que possamos – cada qual em seu devido tempo de maturação e segundo suas próprias possibilidades – aclimatar e cultivar a flor viva do evangelho em nossas mentes e em nossos corações. Além de apresentar a vida de personagens portadores de uma conduta moral exemplar, já bastante iluminados e conscientes da necessidade de se viver alinhado ao bem e à vontade de Deus, são também descritas algumas trajetórias reencarnatórias de espíritos que, assim como nós, estão imersos em processos depurativos de resgate e reparação. Tais trajetórias, por estarem mais próximas da nossa condição espiritual, nos auxiliam, em função da evidenciação dos acertos e dos erros praticados por esses espíritos, a detectar, por meio do estabelecimento de uma comparação analógica, aspectos negativos e positivos, passíveis de serem modificados e aprimorados, que podem (ou não) integrar nossa personalidade.

Nesse sentido, é por meio da evidenciação dos mecanismos da lei de causa e efeito, que tais histórias nos convidam a refletir acerca de nós mesmos, assim como da nossa situação espiritual, estimulando-nos à realização da reforma íntima, de modo a acelerar a nossa marcha ascensional em termos espirituais. Sob esse prisma, os romances escritos por Emmanuel emergem como obras de estudo que auxiliam na compreensão e na operacionalização da essência do ensino moral, legado por Jesus, em nossas vidas. Desse modo, ao estudá-los, cada um pode fazer um exercício de auto-análise, buscando se situar, empaticamente, nas situações vivenciadas pelos personagens com os quais nos sintamos mais identificados.

Para explicar melhor o modo de se estabelecer essa relação de empatia com os personagens descritos nas narrativas, recorre-se ao livro Luz imperecível – coordenado por Honório Onofre de Abreu (1930-2007) –, no qual consta a seguinte explicação:

 

Incorporando-nos às figuras do próprio texto, habilitamo-nos a detectar em nós próprios, padrões ou atitudes, de ordem positiva ou negativa que lhes eram peculiares [(àqueles personagens que viviam naquelas épocas]), a nos sugerirem [(hoje)] implementação de recursos ou mudanças de base, nas profundezas da alma. A partir daí o texto vivifica. Pela auto-análise e na aplicação do “conhece-te a ti mesmo” levantamos caracteres peculiares àqueles personagens e que podem ou não estar presentes em nossa intimidade, tais sejam: hipocrisia, extremismo fanatizante, conhecimento não acionado, cegueira, paralisia ou surdez espirituais, ou quem sabe, nossa posição cadaverizada na indiferença ou na cristalização ante a dinamização da via.

 

Por meio dessa introspecção nos é facultado, dentro dos parâmetros do livre arbítrio, promover mudanças em nossa mente e em nosso coração, afinando-os – em tudo aquilo que estiver dissonante – pelo diapasão da lei de amor, que é a força que rege e harmoniza o universo. Salvo exceções, tratar-se-ia de algo ainda por se fazer entre nós, pois, segundo consta explicado em A caminho da luz, o desenvolvimento do “homem espiritual” – ligado à esfera do sentimento – jaz estacionado em seus surtos de progresso, grosso modo, desde o século IV, quando houve a adaptação dos ensinamentos de Jesus às conveniências e aos interesses do mundo, apartando-os da sua essência divina e redentora. Mas, conforme afirmou Emmanuel, “[…] é chegado o tempo de um reajustamento de todos os valores humanos.”

Diante dessas explicações e à guisa de conclusão, reitera-se a importância de se realizar o estudo dos romances escritos por Emmanuel, tidos como obras que – assim como outras tantas produzidas por esse autor espiritual – confirmam, ao menos em termos potenciais, aquilo que Kardec previra na introdução de O evangelho segundo espiritismo, isto é, o intercâmbio entre os homens e o mundo invisível daria condições para que cada indivíduo pudesse compreender e praticar o ensino moral contido na lei evangélica. Quando isso ocorrer, a lei evangélica deixará de ser “letra morta”, pois, extrapolando as páginas dos livros nos quais está contida, passará a viver na mente, no coração e nas atitudes das pessoas. Para tanto, conforme aconselhou Paulo de Tarso, na Carta aos Efésios, é necessário que “[…] vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito da vossa mente; e vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade.” (Ef, 4:22-24).

 

(Artigo transcrito de: Revista internacional de espiritismo. Ano XCII. No. 3. Abril de 2017. P.146-148)

(*) Doutorando em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro fundador do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Evangelho da Federação Espírita Brasileira (NEPE-FEB). Integrou a Comissão Administrativa do NEPE-FEB, entre setembro de 2012 e março de 2015.

 

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 365. ed. Araras: IDE, 2009, p. 6, grifo nosso.

 

Ibid., p. 8, grifo no original.

 

Os livros mencionados, incluindo os cinco romances, cujos títulos estão listados no parágrafo seguinte, são editados pela Federação Espírita Brasileira (FEB).

 

Para a datação dos livros supracitados – incluindo os títulos mencionados no parágrafo anterior -, optou-se por considerar o ano em que cada um deles foi concluído pelo autor espiritual, conforme consta indicado no final de cada uma das introduções presentes nessas obras.

 

ABREU, Honório Onofre de (Org.). Luz imperecível: estudo interpretativo do evangelho à luz da doutrina espírita. 6. ed. Belo Horizonte: UEM, 2009, p. 23, grifo nosso.

 

Cf. XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 37. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, p. 256-257.

 

A BÍBLIA SAGRADA: contendo o Velho e o Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Edição corrigida e revisada fiel ao texto original. São Paulo: SBTB, 2013.