Cristianismo e Espiritismo: riscos de desvios

Cristianismo e Espiritismo: riscos de desvios

Antonio Cesar Perri de Carvalho (*)

Ao fazermos um recorte na trajetória do marcante Apóstolo Paulo destacamos um momento crucial na história do cristianismo nascente: o registro sobre o ex doutor da Lei Saulo de Tarso, que ao visitar a Casa do Caminho após sua conversão sentiu-se: “[…] torturado pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de reingresso, na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos. Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade e do amor em Jesus Cristo.”1

Saulo de Tarso optou em deixar a tradicional e pioneira ecclesia de Jerusalém, iniciando sua grande tarefa de divulgador do Evangelho.

Esse episódio decisório para os rumos do cristianismo tem sido um foco de estudos nossos com diferentes enfoques, sempre com objetivo de compreensão de fatos históricos e de balisamentos para o presente e futuro.2,3

Ao comentar a vida e obra de Paulo, Herculano Pires destaca a posição clara e marcante do Apóstolo: "Ele libertava a religião da política e do negócio. Para ele, a religião tinha que ser vivida em si mesma e vivida com toda a independência moral". A propósito de trecho de Atos sobre “muitos milagres e prodígios entre o povo pelas mãos dos apóstolos” o autor aponta que ali se encontra "uma das mais belas confirmações evangélicas da realidade e da verdade do Espiritismo e das suas práticas como continuação do cristianismo em espírito e verdade aqui na terra."4

Embora distanciado da FEB até sua desencarnação, o ex-presidente Leopoldo Cirne (que foi vice e sucedeu Bezerra de Menezes) permaneceu atento ao movimento espírita. Escreveu a portentosa obra: Antichristo. Senhor do Mundo, tendo dois subtítulos: “O Espiritismo em falência” e “A obra cristã e o poder das trevas”. Concluída no dia 3/10/1934, impressa por Bedeschi e lançada no Rio de Janeiro em 1935, não foi reeditada.5

Na 1ª Parte, Cirne analisa em detalhes a trajetória do Cristianismo e na 2ª Parte focaliza o Espiritismo.

Leopoldo Cirne comenta a ação do Cristo e de seus seguidores, com citações dos evangelistas, de Atos e de epístolas de Paulo. Considera que o Cristo empreende a obra de educação e redenção da humanidade e raciocina: “o princípio oposto – de separatividade e de egoísmo – que forma o substrato da natureza inferior do homem e constitui, na quase totalidade da espécie humana, o motivo preponderante de seus atos e impulsos? […] esse princípio deverá chamar-se o Anticristo. Somos todos assim, enquanto consentimos em nós o predomínio do egoísmo com todos os seus derivados – ambição, vaidade, orgulho – e pelejamos denodadamente pela obtenção e acréscimo dos bens, posições e vantagens pessoais, com sacrifício dos outros e violação da lei de solidariedade…”5

Na 2ª Parte, Leopoldo Cirne focaliza os momentos predecessores e concomitantes ao Espiritismo, de eclosão de muitos fenômenos mediúnicos e com notável trabalho de vários pesquisadores. Descreve o cenário dos primeiros grupos espíritas do Rio de Janeiro e as dificuldades da novel Federação Espírita Brasileira que segundo ele “Havia, em 1895, atingido o limite de sua capacidade máxima de resistência,…” Depois de focalizar várias questões do movimento espírita até a elaboração do livro, em 1934, nos últimos capítulos do livro Antichristo. Senhor do Mundo, comenta as obras de Allan Kardec e os cuidados do Codificador, exaltando seu trabalho. Entre outras considerações finais, indaga Cirne: “Exageramos? – Percorrei a história de todos os séculos e nos sucessos, coletivos e individuais, em que haja violação do preceito básico formulado pelo Cristo – ‘amai-vos uns aos outros’ – encontrareis a intervenção reacionária do Anticristo. […] Não importa o prazo. […] a nossa humanidade, liberta finalmente do poder das trevas, raiará cedo ou tarde a aurora de sua definitiva redenção.”5

Os rumos do movimento espírita e a questão da união devem merecer atenção e reflexão. No último discurso de Allan Kardec, em novembro de 1868, há colocações muito pertinentes para as reflexões sobre religião e laços ou união dos espíritas:

"O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas."6

Referências:

1) Xavier, Francisco C. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel. Ed. Esp. Brasília: FEB, 2012. 488p.

2) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo nos séculos iniciais: aspectos históricos e visão espírita. Matão: O Clarim [no prelo].

3) Carvalho, Antonio Cesar Perri. União dos espíritas. Para onde vamos? Capivari: EME. 2018. 147p.

4) Pires, José Herculano. Org. Arribas, Célia. O evangelho de Jesus em espírito e verdade. 1.ed. Cap. 15. São Paulo: Editora Paidéia. 2016.

5) Cirne, Leopoldo. Antichristo. Senhor do Mundo. 1.ed. 2ª. Parte. Rio de Janeiro: Bedeschi. 1935. (Resenha em: Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo, Espiritismo e o Anticristo. Revista Internacional de Espiritismo. Ano XCII. No. 9. Outubro de 2017. P. 474-477).

6) Kardec, Allan. Trad. Noleto, Evandro Bezerra. O Espiritismo é uma religião? Revista Espírita. Dezembro de 1868. Ano XII. FEB. 2005.

 

(*) Foi presidente da FEB e da USE-SP.