Conhecimento Espírita

Vladimir Alexei (MG)

No discurso pronunciado junto ao túmulo de Allan Kardec, no Père-Lachaise, o astrônomo francês, Camille Flamarion, grafou seu nome nos clássicos espíritas ao atribuir a Kardec a qualidade de bom senso encarnado.

Segundo Flamarion, “Kardec foi um homem de ciência e de certo não houvera podido prestar este primeiro serviço e dilatá-lo até muito longe, como um convite a todos os corações (…)”. Kardec era o bom senso encarnado por ser um homem de ciência, ou, por ser um homem de ciência, ele adquiriu o bom senso? Ele explica porque Kardec era o bom senso encarnado. Por possuir “razão reta e judiciosa (…)”.

A literatura espírita, particularmente no Brasil, possui legados inconfundíveis quanto a clareza do pensamento do Codificador do Espiritismo. Ilustres polemistas como Carlos Imbassahy (Pai), Leopoldo Machado, José Herculano Pires, Pedro Granja, Deolindo Amorim, Mario Cavalcanti de Melo, Henrique Andrade, dentre outros, por diversas vezes, assumiram a tribuna para explicar e traduzir o pensamento do Codificador diante dos detratores da Doutrina.

Pedro Granja, desconhecido do movimento espírita na atualidade, possui trabalhos muito ricos em termos doutrinários e em conhecimentos gerais a respeito do que tratava o movimento espírita, na primeira metade do século XX. Seu trabalho era tão expressivo, que mereceu prefácio de Monteiro Lobato, na obra “Afinal, quem somos?”. Obra que, em um só fôlego, elenca mais de 90 pensadores, ao longo do tempo e de seus trabalhos, para demonstrar a amplitude do pensamento espírita em relação às filosofias existentes na humanidade.

Monteiro Lobato que, em 2012, quase foi banido das escolas públicas, por ter seu trabalho vinculado ao racismo (vinculação infeliz, diga-se de passagem), era simpático à causa espírita, como pode ser observado em trabalho do Jorge Rizzini. No prefácio da obra do Pedro Granja, de 1947, usando de sua profunda capacidade de síntese, trouxe-nos uma reflexão interessante:

Mas, “AFINAL, QUEM SOMOS?”, você responde neste livro a esta pergunta, meu caro Pedro Granja, ao mostrar-nos o gigantesco esforço dos espíritas, esses cegos que não se conformam com a cegueira, esses aleijados que tentam apalpar, esses surdos que tentam ouvir, por intermédio dos olhos, do tato e dos ouvidos interiores da mediunidade. (GRANJA, p.22, 1982).

Monteiro Lobato, quando jovem, ambicionou a Academia Brasileira de Letras. Entretanto, após recusa injustificada, a não ser pela politicagem mundana, desgostou-se daquela casa. Mesmo quando convidado, mais tarde, após sua obra ser aclamada por todos, declinou em aceitar pertencer a um grupo seleto de pensadores e escritores, que contribuíram para a literatura e a evolução do pensamento brasileiro. Manteve sua autonomia em, com responsabilidade, dizer o que pensa, a bem do desenvolvimento comum de uma sociedade em seu trabalho.

Poderíamos dizer, sem pecha, que Monteiro Lobato foi um Espírita em seu sentido mais amplo da palavra. Assim como Machado de Assis, Monteiro Lobato foi tradutor de diversas obras e autores. Traduziu Will Durant (destacando-se a obra “Filosofia da Vida”), autor muito utilizado por Hermínio C. Miranda em suas pesquisas, permitindo-lhe o desenvolvimento intelectual pelo contato com culturas e pensamentos diferentes.

O espírita, na atualidade, fala muito do Evangelho, de seguir Jesus, de estudar as obras de Kardec, mas, de um modo geral, temos negligenciado pontos importantes. Um deles é do estudo. Por mais que a humanidade tenha evoluído em conhecimento e produções diversas, estudar a doutrina espírita é condição sine qua non. Não se alcança o entendimento do pensamento de Allan Kardec, sem estudar suas obras.

Estudando-as, porém, vemos espíritas vacilando em pensamentos “ultra-ortodoxos”, como se, assim agindo, fossem mais fieis na tradução do pensamento do Codificador. Erro crasso. Engano, aliás, aceito quando se é neófito na doutrina. Quando isso ocorre da parte de pessoas que se dizem “estudiosas”, agir e pensar assim é o mesmo que limitar a grandeza da obra de Kardec, ao seu próprio pensar. É incoerente, senão, vejamos.

Um dos maiores pensadores contemporâneos, o insigne Edgar Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, nascido em Paris em 1921, antropólogo, sociólogo e filósofo francês, autor de diversas obras traduzidas para o português, diz que “há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.”

O autor de “A Religação dos Saberes”, reconhece o desafio da globalidade do conhecimento e, por conseguinte, o desafio de sua complexidade. Continua Morin: “existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo, são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo (causa e efeito, comentário nosso) entre as partes e o todo, o todo e as partes.”

Seria, em outras palavras, o mesmo que insistir em estudar uma doutrina, apenas por uma de suas perspectivas. Um corpo doutrinário, como o Espírita, composto por filosofia, ciência e religião, é mais amplo do que a ortodoxia do pensamento filosófico de alguns de seus profitentes. Por isso Leopoldo Machado disse, em tese apresentada ao 1º Congresso de Jornalistas Espíritas realizado entre os dias 15 e 24 de novembro de 1939, que o Espiritismo é obra de educação. Dizia Machado que, “o Espiritismo, feito o complexo de ciência, filosofia e religião que aí está, é bem – sabemos todos – o Consolador prometido pelo Cristo, o Espírito da Verdade que, a seu tempo, viria exumar do véu da letra que mata, as verdades todas que se contêm nos Evangelhos, afim de integrar toda a humanidade na única doutrina que há de fazê-la feliz.”

Encontramos o metro que melhor mediu Kardec, segundo Emmanuel, dizendo que “O Evangelho renovou o mundo: esta é a verdade.” Quando Herculano Pires diz isso, fala com a autoridade de quem conhece a Doutrina Espírita não apenas como repetidor de pensamentos outros e, sim, por profundas reflexões filosóficas. “Enquanto nós encontramos em todas as religiões do passado, e mesmo religiões do presente, uma tentativa de transformação do homem que se reduz apenas a alguns elementos e se fixa em determinados pontos da Terra, o Evangelho de Jesus, na sua irradiação, conseguiu modificar a mentalidade planetária.”

Aquele que é considerado um dos ultra-ortodoxos, Dr.Ary Lex, em sua Pureza Doutrinária, diz que “Jesus, o mestre amado, nunca deixou uma viúva sem consolo, um doente sem alívio, um transviado sem um conselho, quando os homens, vaidosos, esquecidos de seus erros quiseram apedrejar uma pecadora, Ele os fez sentir que não havia um sequer que não tivesse seus defeitos.” Complementa, sem deixar dúvidas, que “o Espiritismo não veio para derrogar a moral cristã, mas fortalece-la. Um Espiritismo que não aceitasse os princípios morais do cristianismo não seria mais Espiritismo, porque não passaria de uma observação de fatos, guiada, apenas, pela curiosidade do sobrenatural.”

Poderíamos dedicar páginas a fio, trazendo diversos pensamentos daqueles que nos antecederam e se destacaram pelo conhecimento profundo das obras doutrinárias. Entretanto, na atualidade, a crítica gratuita, infundada, propagada como verdade absoluta, grassa em nosso meio, substituindo reflexões e obras, por uma ideia pessoal. Aquele que assume a tribuna para expressar seu pensamento, em detrimento do Pensamento Doutrinário, pratica um desserviço a divulgação e propagação doutrinárias.

Allan Kardec, como bom-senso encarnado, fez jus a expressão. Que não nos falte bom-senso na hora de divulgar a Doutrina Espírita. Que possamos estudar a complexidade dos temas abordados, suas transdisciplinaridades, buscando simplifica-los de maneira a torna-los factíveis a todos. Dizer que o Espiritismo “não é para as massas” é repetir um pensamento fora de contexto. É o mesmo que dizer que o Espiritismo é apenas para os “iniciados”. O Espiritismo é para todo aquele que busca aplacar suas angústias e ansiedades, é para todo aquele que deseja e necessita de refrigério para sua alma, na luta diária, no bom combate. Que Jesus ilumine nossa ignorância, para que o Conhecimento Espírita faça morada em nossa mente, e, também, em nossos corações.