Auto de fé de Barcelona e a queima de livros e de documentos

Auto de fé de Barcelona e a queima de livros e de documentos

      

Antonio Cesar Perri de Carvalho (*)

Na história do Espiritismo há o registro do terrível “Auto de Fé de Barcelona”, perpetrado no dia 9 de outubro de 1861, mas também outras situações assemelhadas não muito divulgadas.

O “Auto de fé de Barcelona” foi uma expressão cunhada por Allan Kardec ao se referir ao episódio ocorrido na cidade espanhola, por ordem de um bispo católico, quando obras suas e de outros autores espíritas foram confiscadas e queimadas em praça pública. Os livros foram encomendados pelo editor francês Maurice Lachâtre que havia montado uma livraria em Barcelona. A citada expressão foi utilizada pela primeira vez como subtítulo do artigo "O resto da Idade Média", publicado pelo Codificador em novembro daquele ano na Revue spirite.1

Todavia, também há situações estranhas internas do movimento espírita.

Em 1884, a amiga e colaboradora do casal Kardec, Berthe Fropo, no seu livro Beaucoup de lumière2, fez um paralelo com as tradicionais sentenças do tribunal da Inquisição, chamadas de autos de fé, ao relatar e comentar um fato promovido por membros da Sociedade que deveria dar continuidade e divulgação às obras do Codificador:

“O que teve de estranho ali foi que o legatário sendo uma Sociedade, uma entidade coletiva, não um de seus membros, não estava presente na retirada dos lacres, nem mesmo o Sr. Joly. Poder-se-ia dizer que só o Sr. Leymarie e seus familiares eram os herdeiros; eles foram ajudados pelo Sr. Vautier, tesoureiro e ao mesmo tempo administrador da Sociedade, o que fazia que ele controlasse a si mesmo. Não houve nem inventário, nem venda pública, exceto as coisas fora de serviço que foram vendidas para revendedores de segunda mão. Tudo aquilo era apenas questão de dinheiro, e tinha pouco valor aos meus olhos. Entretanto, o que me fez estremecer de indignação foi assistir a um verdadeiro auto de fé. O Sr. Vautier queimou pilhas de papéis e de cartas. Quantas comunicações e quantas anotações deixadas pelo mestre foram destruídas.”2

Em viagens doutrinárias pela Europa tivemos conhecimento de fatos acontecidos até meados do século XX durante situações de guerras, revoluções e em Estados totalitários, como: sequestro e queima de livros e documentos espíritas; perseguições e até execuções de lideranças. Chegamos a conhecer pessoas que presenciaram ou foram contemporâneos às tristes ocorrências.

Em nosso país, aconteceu a situação, hoje considerada estranha, de destruição dos originais psicográficos das obras Chico de Xavier. Em entrevista gravada e que publicamos, a antiga funcionária da Federação Espírita Brasileira Rúbia da Costa Guimarães declarou-nos:

“Os originais psicográficos de obras Chico foram destruídos. Na época não havia preocupação em se manter os originais, apenas as edições dos livros com suas emendas. Houve um momento em que Chico não concordou mais com tais revisões e se afastou do dr. Wantuil, nos final dos anos 1960 e ambos não tiveram mais contatos. Parecia um afastamento temporário, mas que perdurou.”3

Por outro lado, sem se caracterizar como destruição, mas num sentido amplo, poderia ser um episódio parecido, os casos em que foram alterados textos originais e traduções de obras espíritas.

Episódio pouco lembrado envolvendo Chico Xavier está registrado na história do movimento espírita e, especificamente, relacionado com a literatura espírita. Tentaram envolver Chico Xavier, mas este, com o apoio de Herculano Pires reagiu de maneira doutrinária e firme. A obra Na hora do testemunho4, uma parceria de Herculano Pires com Chico Xavier, apontou o triste incidente da adulteração de tradução de O Evangelho segundo o Espiritismo, usando atualização e simplificação de palavras em versão publicada pela editora da FEESP, em julho de 1974. Aquela edição, traduzida por Paulo Alves Godoy, “pôs em prática aquilo que denominou um plano de completa e total revisão de toda a Codificação Doutrinária de Allan Kardec, como se houvesse, na atualidade, algum ser humano capaz de ‘revisar’ ou ‘atualizar’ as obras básicas da Codificação.” O livro citado foi comercializado a preços populares, para maior divulgação.

Herculano escreveu vários artigos na imprensa. Esse material, várias mensagens, crônicas, poemas e cartas foram reunidos no livro Na hora do testemunho, no qual Herculano Pires e Chico Xavier definem suas posições, quanto à importância da defesa da obra de Kardec contra as tentativas de alteração de palavras. Os dois autores estranharam o episódio e consideraram que “não há explicação possível para esse fato, fora da doutrina da reencarnação. Paulo Alves Godoy tem sido fiel à Doutrina.”

O famoso psicógrafo marcou uma posição firme e Herculano Pires destacou: “O médium Francisco Cândido Xavier, apesar de sua costumeira isenção em polêmicas doutrinárias, acabou manifestando-se contra a adulteração e tomou posição firme e clara na defesa dos textos de Kardec. A maioria dos chamados líderes espíritas não se manifestou. A hora do testemunho provara mal, revelando a falta de convicção da maioria absoluta, e portanto esmagadora, do chamado movimento espírita brasileiro. Mas os resultados foram se manifestando mais tarde, com um crescente interesse do meio espírita pelas obras de Kardec em edições insuspeitas.” Sabe-se que a Editora parou de editar a tradução alterada.

Esse episódio histórico registrado no livro citado realça que os dois autores foram cumpridores das responsabilidades apontadas por Emmanuel. Este recomendou a Chico Xavier no início de suas atividades mediúnicas que sempre fosse “fiel a Jesus e a Kardec”, e, chamou Herculano Pires de “o metro que melhor mediu Kardec”.

Interessante que Chico Xavier sempre cordato e benevolente, deu o claro testemunho de fidelidade na defesa de obras essenciais.

Atualmente, há mais clareza para se valorizar a preservação de documentos e originais de livros.

Referências:

1) Kardec, Allan. Trad. Abreu Filho, Júlio. Os restos da Idade Média. Auto-de-Fé das obras espíritas em Barcelona. Revista espírita. Novembro de 1858. Vol. IV. São Paulo: EDICEL. p. 337-341.

2) Fropo, Berthe. Trad. Lopes, Ery; Miguez, Rogério. Muita luz. Cap. Como o Espiritismo é dirigido. Versão digital bi-lingue, de dezembro de 2018: https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L158.pdf

3) Guimarães, Rúbia da Costa. Vários momentos da difusão do livro. Entrevista. Reformador. Ano 132. N. 2.225. Agosto de 2014. P. 458-460.

4) Xavier, Francisco Cândido; Pires, José Herculano. Na hora do testemunho. 1.ed. São Paulo: Paidéia. 1974. 120p.

(*) Foi presidente da USE-SP e da FEB; ex-membro da Comissão Executiva do CEI.

DE: Boletim de Notícias”: http://www.noticiasespiritas.com.br/2020/OUTUBRO/09-10-2020.htm