A apropriação do Novo Testamento pelo segmento espírita

A apropriação do Novo Testamento pelo segmento espírita

Natália Cannizza Torres (*) 

O movimento espírita brasileiro está cada vez mais diversificado. Nele, hoje, encontra-se todo tipo de grupo, desde os que defendem pautas mais seculares, aos que se voltam cada vez mais para a religiosidade.

Neste texto, detenho-me a um grupo específico que tem ganhado cada vez mais força e presença nos centros espíritas. Sua proposta, generalizadamente, é estudar o Novo Testamento de forma bastante pormenorizada, enfocando no que a letra de pronto não revela, ou seja, buscar nos recursos da geografia, linguística, história e estudos culturais a fonte para entender os versículos bíblicos o mais próximo da realidade de seus autores. Querem entender o sentido original da proposta de Jesus e, para isso, encontram, no estudo subsidiado por estas diversas áreas do conhecimento, a ferramenta para tal compreensão.

Minha pesquisa de mestrado pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, defendida em junho de 2019, buscou compreender como o estudo do Novo Testamento pelos espíritas foi se estruturando e ganhando corpo até chegar nos dias atuais em que ganha um status de oficial nos centros espíritas, ancorado por uma metodologia bem definida e pela profundidade com que seu tema é tratado. Isso significa compreender como o discurso dos espíritas, reivindicando seu compromisso com os valores cristãos, passou de um discurso baseado na atenção exclusiva ao Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, e no máximo em obras subsidiárias Chico Xavier, para um discurso que entende o estudo do Novo Testamento como uma ferramenta imprescindível para se compreender melhor a proposta espírita de cristianismo.

Esta prática surgiu primeiro em 1957, cem anos após o nascimento da doutrina espírita, em Belo Horizonte, por meio de um grupo de estudiosos espíritas que formaram o Grupo Emmanuel. Honório Onofre Abreu, Leão Zálio e José Damasceno Sobral fundaram esse grupo, pois tinham um grande interesse em se aprofundarem no Novo Testamento. Este grupo foi crescendo e agregando adeptos ao longo das décadas. Figuras famosas do movimento espírita brasileiro formaram-se nele, como Martins Peralva, Haroldo Dutra Dias, Wagner Gomes da Paixão, Aluízio Elias, Sheila Passos, Guilherme de Barros, entre outros. Em Belo Horizonte, esse movimento já era consolidado e, em 1997, a União Espírita Mineira (UEM) adotou esta proposta como oficial, com o nome de Estudo Aprofundado do Evangelho de Jesus (EMEJ). A partir disso, todo o estado passou a adotar esse método de estudo do Novo Testamento.

Um momento muito importante para a disseminação deste estudo foi quando, em 2010, houve o III Congresso Espírita Brasileiro em Brasília. Com seu tema em homenagem ao centenário de nascimento de Chico Xavier, as pessoas passaram a relembrar e a reavivar sua obra, principalmente aquelas em que Emmanuel e outros espíritos comentavam passagens bíblicas, como a série Caminho, Verdade e Vida. Nesse mesmo evento, foi lançada a tradução de parte do Novo Testamento por Haroldo Dutra Dias, realizada por encomenda da Federação Espírita Brasileira (FEB) um sucesso de vendas.

Com este Congresso, muitos artigos foram escritos a respeito dos livros de Chico Xavier de exegese cristã espírita, e a FEB, sob presidência interina de Antonio Cesar Perri de Carvalho começaram a realizar primeiro um estudo aprofundado do Evangelho Segundo o Espiritismo e, no ano seguinte, em 2013, fundaram o Núcleo de Estudo e Pesquisa do Evangelho (NEPE). Sua primeira formação contava com Haroldo Dutra Dias, Ricardo Mesquita, Simão Pedro de Lima, Wagner Gomes da Paixão, Afonso Chagas, Célia Maria Rey de Carvalho, Flávio Rey de Carvalho e Antonio Cesar Perri de Carvalho. Por conta da fundação do NEPE na FEB, os centros espíritas de todo o Brasil passaram a adotar esse modelo de estudo e fundaram NEPEs em todas as regiões.

Hoje em dia, de acordo com o site http://www.nepebrasil.org, já existem 75 NEPEs em 15 estados do país. Posteriormente a eles, foi criado o Miudinho, grupo de Uberaba, liderado por Aluísio Elias que, a partir de 2017, passou a gravar suas reuniões disponibilizadas até hoje em seu canal no Youtube. As conclusões a que podemos chegar são que esse movimento em direção ao aprofundamento do estudo do Novo Testamento pelos espíritas representa um reforço de seu caráter religioso, haja vista que seu caráter tríplice (ciência – filosofia – religião) não é difundido dessa maneira no Brasil, país no qual privilegia-se o aspecto religioso da doutrina, do ponto de vista sociológico.

Os discursos usados para defender e promover este tipo de prática fundamentam-se desde que, na questão 625 de O Livro dos Espíritos, os “espíritos” indicam a figura de Jesus como guia e modelo para a humanidade. Portanto, nada mais lógico do que estudar sua obra para que se possa, de fato, aprender como seguir seus passos. É relevante também a justificativa de que o Espiritismo, como terceira revelação, busca dar continuidade a uma proposta que iniciada com a doutrina de Moisés, passando por Jesus e continuando com Kardec, buscando resgatar o que verdadeiramente o nazareno pregava, para além das formas dogmáticas que o cristianismo foi acrescentando ao longo dos séculos.

(*) Natália Cannizza Torres é socióloga e autora da tese: Jesus, a porta, Kardec, a chave: a apropriação do Novo Testamento pelo segmento espírita. (https://repositório.ufscar.br/handle/ufscar/11755).

TRANSCRITO DE:

POR USESP POSTADO EM 8 DE SETEMBRO DE 2020 – Jornal Dirigente espírita, edição julho/agosto de 2020: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/07/DE178C.pdf