160 anos de O evangelho segundo o espiritismo – elaboração e objetivos

160 anos de O evangelho segundo o espiritismo – elaboração e objetivos

 

Antonio Cesar Perri de Carvalho

Às vésperas dos 160 anos de O evangelho segundo o espiritismo, é oportuna a lembrança sobre os momentos iniciais dessa obra básica de Allan Kardec.

No período de preparação da então intitulada Imitação do evangelho segundo o espiritismo, alguns episódios expõem aspectos notáveis sobre o perfil do autor. Realçamos a sensibilidade e os cuidados para a análise dos ensinos de Jesus à luz do Espiritismo.

Kardec havia recebido mensagem espiritual de encorajamento sobre a nova obra e com essa praticamente delineada, foi estimulado a realizar um autêntico “retiro”. Em agosto de 1863 estabeleceu-se em Sainte-Adresse, litoral da Normandia, pitoresca cidade imortalizada nas telas do impressionista Claude Monet. Alugou uma “cabana de praia” e “em isolamento”, “livre de qualquer outra preocupação”, assistido por notáveis Espíritos, fez a revisão completa, modificando-a consideravelmente.1

[…] Meses depois, em abril de 1864, a Livraria Dentu, localizada no Palais Royal, lançou Imitação do evangelho segundo o espiritismo.

Na Revista espírita daquele mês, a primeira matéria – Bibliografia -, informava os objetivos da obra e que estava disponível: “Esta obra é para uso de todos. Cada um pode aí colher os meios de conformar sua conduta à moral do Cristo”.2

Dias depois, em 1o de maio, a Igreja Católica incluiu todas as obras de Kardec no Index Librorum Prohibitorum.

[…] Em dezembro de 1864, a Revista espírita traz mensagem do Espírito da Verdade sobre o livro: “[…] é uma luz mais brilhante que vem clarear a vossa marcha…”2

A versão inicial teve duas tiragens, em 1864 e 1865. O título original foi mudado para O evangelho segundo o espiritismo e é sabido que Kardec recebeu sugestões de cinco títulos, vindas de amigos, entidades espirituais e do editor Didier.3 Kardec rejeitou-as e usou o seu critério de decisão. O título foi alterado na 2ª edição (ou tiragem), e acrescentando o subtítulo – Parte Moral -, excluído a partir da 3ª edição.3

Em “Notícias bibliográficas” (Revista espírita, novembro de 1865), lê-se: “no prelo, para aparecer em poucos dias a 3a edição de O evangelho segundo o espiritismo – revista, corrigida e modificada. […] objeto de um remanejamento completo da obra. Além de algumas adições, as principais alterações consistem numa classificação mais metódica, mais clara e mais cômoda das matérias, o que torna sua leitura e as buscas mais fáceis”.2

[…] A edição considerada definitiva veio a lume em 1866, firmando o novo título.

No Brasil, a primeira tradução surge em 1876, a partir da 16a edição francesa, elaborada pelo dr. Joaquim Carlos Travassos (utilizava os pseudônimos Fortúnio e Confúcio), editada por B.L. Garnier (Rio de Janeiro). A versão mais difundida, tradução por Guillon Ribeiro da 3a edição francesa, foi realizada em 1936/1937, editada pela FEB. Há várias traduções, publicadas por diversas editoras.

Na abertura de O evangelho segundo o espiritismo, há eloquente mensagem: “[…] são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos. As grandes vozes do Céu ressoam como sons de trombetas, e os cânticos dos anjos se lhes associam. Nós vos convidamos, a vós homens, para o divino concerto. […] Amai-vos, também, uns aos outros …” – O Espírito de Verdade.4

Kardec define os objetivos: “o ensino moral […] conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, […] toda a gente admira a moral evangélica; […] dificuldade que apresenta o entendimento do Evangelho que, para o maior número dos seus leitores, é ininteligível. A forma alegórica e o intencional misticismo da linguagem fazem que a maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como leem as preces, sem as entender, isto é, sem proveito. Passam-lhes despercebidos os preceitos morais, disseminados aqui e ali, intercalados na massa das narrativas”.4

Essa diretriz está clara nos capítulos, iniciados com transcrições de versículos dos evangelistas, seguindo-se a análise e interpretação por Kardec e as instruções espirituais. Daí a coerência do título: interpretação dos Evangelhos com base nos princípios de O livro dos espíritos.

[…] O último discurso de Kardec (finados de 1868), deve merecer estudos e reflexões: “O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. […] o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isso, porque é doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza”.2

Referências:

1) Kempf, Charles. Como Allan Kardec preparou O evangelho segundo o espiritismo. Reformador. N.2224. Julho de 2014. P. 399-402.

2) Kardec, Allan. Trad. Abreu Filho, Júlio. Revista espírita. Abril de 1864; Novembro de 1865; Dezembro de 1868. São Paulo: EDICEL.

3) Kardec, Allan. Imitation de l’évangile selon le spiritisme. Reprodução fotomecânica. Rio de Janeiro: FEB. 1979.

4) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. O evangelho segundo o espiritismo. 131e. Brasília: FEB.

Síntese/trechos de artigo do autor publicado em:

Revista internacional de espiritismo. Ano XCIX. N. 2. Março de 2024. P. 98-100.