Cristo, cristianização e nós
Antonio Cesar Perri de Carvalho
Os finais de ano são assinalados pelas comemorações relacionadas com o nascimento de Jesus. Essas evocações merecem reflexões sobre a significação espiritual da efeméride no contexto da sociedade com base na literatura espírita.
Desde os momentos preparatórios a esse nascimento, incluindo o “século de Augusto” e o momento da “maioridade terrestre”1 -, a condescendência do contemporâneo imperador Tibério com relação ao “profeta” que surgia, o profundo impacto da força espiritual da missão do Cristo, e, na sequência, a consolidação com a renúncia e extrema dedicação de heroicos discípulos. Os revezes e perseguições atrozes estabelecidos em algumas etapas do Império Romano acabaram por fortalecer a têmpera de notáveis cristãos e de favorecer a difusão do cristianismo.2
Passados dois mil anos, os enganos cometidos geraram muitas resistências a segmentos cristãos em vários países. Porém, apesar de várias deturpações, a mensagem de Cristo sobreviveu, e, em nossos dias, há o esforço para se restabelecer a essência de seus ensinamentos e de se valorizar a simplicidade do cristianismo primitivo. É a proposta de implantação e difusão da mensagem do “Consolador Prometido” pelo Mestre. O Espírito da Verdade destaca que “no cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram.”3
A propósito, Léon Denis comenta: “quaisquer que sejam os erros ou as faltas dos que se acobertam com o nome de Jesus e sua doutrina, o pensamento do Cristo em nós não desperta senão um sentimento de profundo respeito e de sincera admiração” e destaca: "só há um Deus – diz S. Paulo e um só mediador entre Deus e os homens, que é Jesus-Cristo, homem."4
As dificuldades atuais para a marcha das propostas de Jesus são assinaladas pelo filósofo Herculano Pires ao se referir a questionamentos vigentes no meio da intelectualidade. Considera que “há um abismo entre o Cristo e o cristianismo”, levando em consideração a obra O cristianismo de Cristo e o dos seus vigários, dos anos 1920, de autoria do Padre Alta (pseudônimo do padre francês Mélinge). Herculano ressalta: “o cristianismo, que pelo poder do seu conteúdo moral e espiritual, já podia nos ter dado um mundo melhor, foi frustrado na sua intenção pelo apego dos homens ao maravilhoso, ao fantástico, e pela indiferença preguiçosa dos comodistas, que só pensaram em se acomodar e tirar proveito das situações criadas. Jesus não foi um alucinado, como o diagnosticou Binét Sanglé, nem um Deus, como querem ainda hoje os religiosos ingênuos, mas um homem, encarnação de um espírito superior, que se encarnou num momento decisivo da evolução humana, a fim de dar a sua contribuição para o progresso da Terra” […] o chamado Cristianismo Oficial, como disse Stanley Jones[*], está mais distante do Cristo do que o chamado cristianismo marginal dos nossos dias”.5
Obra publicada postumamente reúne excelentes estudos de Herculano Pires6, com base em gravações de programas radiofônicos, tendo como foco a visão do evangelho “em espírito e verdade”, referindo-se aos princípios e cuidados no movimento espírita, há a ponderação: "o que nos deve interessar não é nossa opinião nisso ou naquilo, mas sim a firmeza com que pudermos seguir os princípios da doutrina espírita. E esses princípios estão firmados, como nós sabemos na codificação de Allan Kardec. E estes princípios, por sua vez, têm a sua base mais profunda, as suas raízes mais penetrantes nos próprios evangelhos de Jesus."6
No contexto da atualidade, com vistas ao objetivo de revigorar o cristianismo com base na mensagem da Boa Nova torna-se cabível o comentário espiritual inserto em O evangelho segundo o espiritismo: “[…] A história da cristandade fala de mártires que se encaminhavam alegres para o suplício. Hoje, na vossa sociedade, para serdes cristãos, não se vos faz mister nem o holocausto do martírio, nem o sacrifício da vida, mas única e exclusivamente o sacrifício do vosso egoísmo, do vosso orgulho e da vossa vaidade. Triunfareis, se a caridade vos inspirar e vos sustentar a fé.”3
A visão espírita é desenvolvida por Cairbar Schutel: “o cristianismo, sob os ditames de Jesus, é uma Religião Viva, representada por um corpo de espíritos que se acham a ele subordinados e que dirigem e animam o cristianismo. O estudo do cristianismo, digno de toda a atenção e observação, está intimamente ligado ao estudo da alma, do espírito. […] o espiritismo é o espírito do cristianismo.”7
Na obra Emmanuel, o autor espiritual, numa apreciação geral, analisa que “a Civilização Ocidental está em crise; os observadores e os sociólogos trazem, para o amontoado de várias considerações, o resultado dos seus estudos. Alguns proclamam que toda civilização tem a fragilidade de uma vida; outros aventam hipóteses mais ou menos aceitáveis, e alguns apeiam para a cristianização dos espíritos. Estes últimos estão acertados em seus pareceres”.8 Em outra obra psicografada por Chico Xavier, esse espírito anota claramente: “a realidade é que a civilização ocidental não chegou a se cristianizar”.2 Assim, recomenda de forma objetiva: “que é preciso cristianizar a humanidade é afirmação que não padece dúvida; entretanto, cristianizar, na Doutrina Espírita, é raciocinar com a verdade e construir com o bem de todos, para que, em nome de Jesus, não venhamos a fazer sobre a Terra mais um sistema de fanatismo e de negação.”2
Ainda há algumas expectativas da parusia. Cristo é esperado por muitos para “a salvação dos homens” … A ideia mágica de salvação, sedimentada por religiões tradicionais alimenta o pensamento de boa parte da população. O espiritismo é muito claro ao esclarecer os mecanismos de educação e evolução espiritual assentados a partir do esforço pessoal de superações de dificuldades e aprimoramento com base na adoção da moral ensinada por Jesus. Ao interpretar o versículo “E disse-lhe o Senhor em visão: – Ananias! E ele respondeu: Eis-me aqui, Senhor!” (Atos 9, 10), Emmanuel esclarece: “os homens esperam por Jesus e Jesus espera igualmente pelos homens. Ninguém acredite que o mundo se redima sem almas redimidas”. No final de suas considerações, o autor espiritual objetivamente destaca: “onde estiver um seguidor do Evangelho aí se encontra um mensageiro do Amigo Celestial para a obra incessante do bem. Cristianismo significa Cristo e nós.”9
No contexto atual são evidentes os embates teológicos e sociais no seio das grandes e tradicionais religiões cristãs. Ao se analisar os entrechoques da sociedade contemporânea, torna-se oportuno trazer à tona o entendimento do mecanismo das reencarnações para uma melhor compreensão de muitas turbulências. Depois de quase dois mil anos da origem do cristianismo, podem estar de volta espíritos – quais seres antigos que reaparecem – que vivenciaram etapas ou situações as mais diversas nas lutas vinculadas a conceitos e práticas de religião.
De nossa parte, dispomos de valiosos subsídios oferecidos pela literatura espírita, e, recomendamos a releitura e estudo dessas obras referenciadas, absolutamente coerentes sobre a responsabilidade que temos em mãos, no sentido de valorizar o ensino moral de Jesus. Em épocas identificadas como "sinais dos tempos", são indispensáveis as definições e as lutas interiores e de relações interpessoais assentadas nos parâmetros do bem e da paz.
Referências:
1) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo nos séculos iniciais. Aspectos históricos e visão espírita. Matão: O Clarim. 2018. 286p.
2) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. A caminho da luz. Cap. 12. Brasília: FEB. 2013.
3) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. O evangelho segundo o espiritismo. Cap. VI, item 5; Cap. XI, item 8. Brasília: FEB. 2013.
4) Denis, Léon. Trad. Cirne, Leopoldo. Cristianismo e espiritismo. Brasília: FEB. 2013. 336p.
5) Pires, José Herculano. Revisão do cristianismo. São Paulo: Paideia. 1977. 110p.
6) Pires, José Herculano. Org. Arribas, Célia. O evangelho de Jesus em espírito e verdade. 1.ed. Cap. 6 e 9. São Paulo: Editora Paidéia. 2016.
7) Schutel, Cairbar. O espírito do cristianismo. Matão: O Clarim. 2018. 284p.
8) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Emmanuel. 28.ed. Cap. 2.5 e 4.1. Brasília: FEB. 2013.
9) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Fonte viva. Cap. 17. Rio de Janeiro: FEB. 2005.
Transcrito de artigo do autor: Revista internacional de espiritismo. Ano 99. N.11. Dezembro de 2024. P. 542-543.
[*] Teólogo americano, vinculado ao movimento metodista, atuou no Século XX.