ATUALIDADE DO ESPIRITISMO COMO RELIGIÃO
Por Flávio Rey de Carvalho (*)
Com a proposta de fornecer subsídios passíveis de enunciar a atualidade do espiritismo como religião, o presente estudo objetiva tecer algumas considerações ligadas ao surgimento da doutrina espírita, em meados do Oitocentos, e refletir sobre seu aspecto religioso, utilizando-se, para isso, a categoria “religião pessoal”, apreendida da obra As variedades da experiência religiosa, de William James.
Sob essa perspectiva, que considera aquilo que parte do “interior” das pessoas ‒ seus “sentimentos”, sua “consciência” e seus “atos” ‒, sustenta-se a hipótese de que o espiritismo é uma religião baseada no estabelecimento do laço moral entre os indivíduos, isto é, no desenvolvimento dos sentimentos mútuos de fraternidade, solidariedade, indulgência e benevolência. Assim, baseando-se na divisão do campo religioso proposta por William James, o espiritismo, caso fosse considerado sob a perspectiva formal (manifesta em protocolos, rituais, cerimônias, hierarquias, etc.), própria da “religião institucional”, não seria, de fato, uma religião. Por outro lado, caso seja levado em conta o viés da “religião pessoal” (que envolve, em suma, o sentimento religioso dos indivíduos), o espiritismo é uma religião.
Para fazer um balanço final, retoma-se, oportunamente, a constatação feita pela cientista social Maria Angela Vilhena, segundo a qual para “certas lideranças espíritas” a questão de o espiritismo ser considerado como uma religião seria “complexa e controversa” ‒ todavia, o que estaria motivando isso?
Kardec foi bastante claro quando afirmou, na Revista espírita de 1868, que o espiritismo é ‒ “sem dúvida” ‒ uma religião: baseada, pura e simplesmente, no estabelecimento do laço moral entre os indivíduos, isto é, pautada pelo desenvolvimento dos sentimentos mútuos de fraternidade, solidariedade, indulgência e benevolência. Frente a esse posicionamento de Kardec, a sua simples rejeição, por parte de algumas lideranças espíritas, já não seria um indício de que poderia estar ocorrendo um desvirtuamento na sua proposta basilar? Poderiam as noções de culto, forma, hierarquias, cerimônias ou privilégios terem se imiscuído em setores do meio espírita, distanciando-os do ideal doutrinário delineado por Kardec? Não seria esse, possivelmente, o motivo da falta de consenso em se considerar o espiritismo como uma religião? Tratam-se de questões complexas e controversas, porém, devemos nos guiar pelos posicionamentos de Kardec, que, quando bem interpretados, não deixam dúvidas, pois, como ele afirmou na conclusão de O livro dos espíritos: “O Espiritismo se apóia sobre as próprias bases da religião […].”
Portanto, considera-se que essa esfera de atuação religiosa do espiritismo, a despeito de consistir em uma proposta elaborada em meados do século XIX, mantém-se adequada aos desafios suscitados pela atualidade ‒ vista como uma época marcada pela relação e pelo diálogo entre as culturas, conforme esta síntese feita pelo pesquisador da religião Aldo Natale Terrin: “Num tempo em que as culturas se fragmentam e se entrecruzam, se constroem e se dissolvem, as religiões têm o dever de tentar um caminho paralelo de ecumenismo e de globalização de forças, caminho indicado pelo próprio mundo atual, mas têm também o dever de realizar esse percurso em sentido unitário e convergente para ainda servirem de ponto de referência e de farol de luz para a humanidade.”
Síntese do capítulo de livro digital:
Carvalho, Flávio Rey. Atualidade do Espiritismo como religião. In: Purificação, Marcelo Máximo; Catarino, Elisângela Maura (Org.). Teologia e ciência da religião: agenda para discussão. Cap. 9. Ponta Grossa: Atena Editora. 2019. P. 71-78.
Disponível em:
https://www.atenaeditora.com.br/post-artigo/26224
(*) Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP; Mestre em História pela UnB; colaborador em São Paulo do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa Espírita Eduardo de Carvalho Monteiro.