Quo vadis: de Roma à atualidade
Antonio Cesar Perri de Carvalho (*)
O movimento espírita requer alguns estudos e reflexões. Afinal de contas deve representar ação e uma dinâmica de avaliação continuada, sendo sempre válidas indagações como: o que pretendemos? para onde vamos?
Allan Kardec faz considerações amplas e lúcidas sobre a questão da revelação em A Gênese e com significativa colocação: "[…] o que caracteriza a revelação espírita é que a sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos espíritos e que a elaboração é o fruto do trabalho do homem.”1
Aí se incluem algumas situações identificáveis em instituições espíritas de nossos dias à vista das alterações legais em nosso país nos últimos 30 anos e do contexto em geral.
Torna-se cabível também uma releitura do quase septuagenário “Pacto Áureo” para se verificar se suas cláusulas permanecem aplicáveis no cenário do movimento espírita atual.2
Como cidadãos do século XXI, observamos que no mundo dinâmico em que vivemos sucedem-se mudanças e inovações. Especialistas em gestão e transformações recomendam a valorização de novos talentos, nova cultura e novas formas de fazer as coisas, inclusive não se desprezando receios e preocupações.3
Todavia ao se analisar a atualidade torna-se interesse se conhecer a trajetória dos primeiros tempos do cristianismo realizando-se algumas analogias com o movimento espírita.4
Interessante é que na história do cristianismo nascente, há o registro do ex doutor da Lei Saulo de Tarso, que ao visitar a Casa do Caminho após sua conversão sentiu-se: “[…] torturado pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de reingresso, na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos. Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade e do amor em Jesus Cristo.”5 Saulo de Tarso optou em deixar a tradicional e pioneira ecclesia de Jerusalém, iniciando sua grande tarefa de divulgador do Evangelho. Ao comentar a vida e obra de Paulo, Herculano Pires destaca a posição clara e marcante do Apóstolo: "Ele libertava a religião da política e do negócio. Para ele, a religião tinha que ser vivida em si mesma e vivida com toda a independência moral". A propósito de trecho de Atos sobre “muitos milagres e prodígios entre o povo pelas mãos dos apóstolos” o autor aponta que ali se encontra "uma das mais belas confirmações evangélicas da realidade e da verdade do Espiritismo e das suas práticas como continuação do cristianismo em espírito e verdade aqui na terra."6
Em portentosa obra, hoje raríssima, o ex-presidente da FEB Leopoldo Cirne faz ricas apreciações em Antichristo. Senhor do Mundo, tendo dois subtítulos: “O Espiritismo em falência” e “A obra cristã e o poder das trevas”, publicada no Rio de Janeiro em 1935.7 Cirne considera que o Cristo empreende a obra de educação e redenção da humanidade e raciocina: “o princípio oposto – de separatividade e de egoísmo – que forma o substrato da natureza inferior do homem e constitui, na quase totalidade da espécie humana, o motivo preponderante de seus atos e impulsos? […] esse princípio deverá chamar-se o Anticristo. Somos todos assim, enquanto consentimos em nós o predomínio do egoísmo com todos os seus derivados – ambição, vaidade, orgulho – e pelejamos denodadamente pela obtenção e acréscimo dos bens, posições e vantagens pessoais, com sacrifício dos outros e violação da lei de solidariedade…”7
Evidentemente que o conceito e a prática de religião determinam diferenças de comportamentos e a origem de eventuais problemas de relacionamento em geral. Nessa relação entre essência de proposta religiosa e institucionalização, entendemos como oportuna a reflexão nesses comentários do autor espiritual Emmanuel: "As instituições humanas vivem cheias de códigos e escrituras. Os templos permanecem repletos de pregações. Os núcleos de natureza religiosa alinham inúmeros compêndios doutrinários. O Evangelho, entretanto, não oculta os propósitos do Senhor. Toda a movimentação de páginas rasgáveis, portadoras de vocabulário restrito, representa fase de preparo espiritual, porque o objetivo de Jesus é inscrever os seus ensinamentos em nossos corações e inteligências. Poderemos aderir de modo intelectual aos mais variados programas religiosos, navegarmos a pleno mar da filosofia e da cultura meramente verbalistas, com certo proveito à nossa posição individual, diante do próximo; mas, diante do Senhor, o problema fundamental de nosso espírito é a transformação para o bem, com a elevação de todos os nossos sentimentos e pensamentos. O Mestre escreverá nas páginas vivas de nossa alma os seus estatutos divinos.”8
Daí o valor de se recorrer ao pensamento do Codificador. Kardec se refere ao “laço moral” e detalha o real caráter religioso do Espiritismo.9 A fundamentação em obras do Codificador Allan Kardec e textos sobre união psicografados por Chico Xavier são poderosos antídotos a deturpações que podem grassar no movimento espírita. Com base no relacionamento proposto pelo cristianismo fica mais fácil o entendimento do raciocínio de Emmanuel: “Pensa um pouco e entenderás que é sempre muito fácil ajuntar os interesses da Terra e fazer a união para o bem da força, mas apenas entesourando as qualidades do Cristo na própria alma é que nos será possível, em verdade, fazer a união para a força do bem.”10
A nosso ver é oportuna a lembrança de conhecida frase latina: Quo vadis?, que significa "Para onde vais?" ou "Aonde vais?". Teria surgido em um relato considerado apócrifo conhecido como "Atos de Pedro", quando o apóstolo estaria tentando fugir de um provável sacrifício em Roma. Jesus teria aparecido a ele e pergunta: Quo vadis? Em seguida Jesus também responde: "Vou a Roma para ser crucificado de novo". Pedro teria desistindo da fuga e retornado a Roma onde foi sacrificado. A frase latina e o episódio citado ficaram imortalizados no filme cinematográfico americano épico “Quo vadis” de 1951.
A propósito, há uma frase parecida registrada pelo apóstolo João: “Agora que vou para aquele que me enviou, nenhum de vocês me pergunta: Para onde vais?“11
O tema “união dos espíritas” é de fundamental importância para o bom desenvolvimento e o futuro do movimento espírita. O movimento espírita deve considerar a indagação “Para onde vais” e alinhar propostas e ações –- que efetivamente visem facilitar-se a disseminação dos ensinos do “Espírito da verdade”. Portanto é pertinente a questão para o movimento e a união dos espíritas – para onde vamos?
Referências:
1) Kardec, Allan. Trad. Sêco, Albertina Escudeiro. A gênese. 3.ed. Cap. I, item 13. Rio de Janeiro: Ed. CELD. 2010.
2) Carvalho, Antonio Cesar Perri. União dos espíritas. Para onde vamos? 1.ed. Capivari: Ed. EME. 2018. 144p.
3) Immelt, Jeffrey R. Na liderança da transformação. Harvard Business Review. Setembro de 2017.
4) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo nos séculos iniciais: aspectos históricos e visão espírita. Matão: O Clarim [no prelo].
5) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Paulo e Estêvão. Ed. Esp. Brasília: FEB, 2012. 488p.
6) Pires, José Herculano. Org. Arribas, Célia. O evangelho de Jesus em espírito e verdade. 1.ed. Cap. 15. São Paulo: Editora Paidéia. 2016.
7) Carvalho, Antonio Cesar Perri. Cristianismo, Espiritismo e o Anticristo. Revista Internacional de Espiritismo. Ano XCII. No. 9. Outubro de 2017. P. 474-477.
8) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Vinha de luz. 1.ed.esp. Cap. 81. Brasília: FEB. 2005.
9) Kardec, Allan. Trad. Noleto, Evandro Bezerra. O Espiritismo é uma religião? Revista Espírita. Dezembro de 1868. Ano XII. FEB. 2005.
10) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Seara dos médiuns. 19.ed. Cap. 46. Brasília: FEB. 2008.
11) João 16, 5.
(*) – Ex-presidente da FEB e da USE-SP.
Transcrição de: Revista Internacional de Espiritismo. Ano XCIII. No. 4. Maio de 2018; acesso: https://www.oclarim.org/oclarim/materias/5737/revista/2018/Maio/-quo-vadis-de-roma-a-atualidade.html