Do contexto do Auto de Fé de Barcelona à atualidade
Antonio Cesar Perri de Carvalho (*)
O episódio do Auto de Fé efetivado em Barcelona (Espanha), no dia 09 de outubro de 1861, para queima pública de livros e revistas espíritas, enviados por Allan Kardec para o livreiro Maurice Lachâtre é sempre lembrado entre as efemérides históricas do espiritismo.
Em realidade, esse fato se insere no contexto das relações entre a igreja católica e países onde ela exercia forte influência junto ao povo e aos governos. No Século XIX, “época das grandes luzes”, com variadas descobertas e teorias, ocorreram modificações na concepção, no papel e o modo de vida do homem. O Codificador viveu nesse cenário renovador e conturbado. Era um período de polêmicas e choques na vida política e religiosa da França.
[…] Em 1863 Kardec faz uma resenha na Revue spirite1 sobre o livro Sermões sobre o Espiritismo pregados na catedral de Metz refutados por um espírita de Metz. O autor da obra refutava os sermões de combate ao espiritismo proferidos pelo padre R.P. Letierce, na cidade de Metz. Esse religioso relacionava o espiritismo com a loucura e maldade; divulgava que espíritas agiam sob “influência dos espíritos do inferno”; considerava a não aceitação do dogma da eternidade das penas como uma heresia. Essa obra histórica, de autor embora sob anonimato, para a época demonstra coragem e fidelidade ao espiritismo.2
No capítulo “Fora da caridade não há salvação” de O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec justifica este lema em anteposição aos “fora da Igreja não há salvação” e “fora da verdade não há salvação”, exemplos de discriminação e até de arrogância, defendidas à época, respectivamente, pelas igrejas católica e reformadas. No prazo curtíssimo de apenas um mês após o lançamento de Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, em 1864, essa obra foi incluída no Index librorum prohibitorum, a lista de publicações proibidas pela Igreja Católica. Esse foi o contexto vivido por Kardec por ocasião da redação das Obras Básicas.
Por outro lado, essas perseguições religiosas movidas contra lideranças e instituições espíritas prosseguiram principalmente nas primeiras décadas do Século XX em vários países da Europa e da América Latina, notadamente durante a vigência de regimes políticos autocráticos.
Em nosso país, há registros sobre os processos contra os pioneiros Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento (MG); Cairbar Schutel em Matão (SP) e entre os fatos muito divulgados pela mídia em geral, há o caso de José Arigó nas décadas de 1950 e 1960.
[…] Embora tenham ocorrido transformações na legislação e no entendimento interno das religiões, favorecendo esforços de respeito e de ações e diálogos interreligiosos, ainda surgem focos de incompreensões e discriminações, até com atos de violência chegando à depredação de templos, por parte de alguns segmentos vinculados a práticas religiosas.
Outro aspecto de nossos dias, é a preocupante vinculação que se estabelece entre religiões e política partidária. Isso, contrariando preceitos constitucionais de um Estado laico. O amadurecimento da cidadania e o aprimoramento da compreensão de religiosidade são indispensáveis para se superar os impasses motivados por diferentes formas de pensamento e de ação relacionados com as religiões e para favorecer o respeito entre as pessoas e suas crenças.
Esse processo de educação da sociedade é que criará condições para se colocar em prática observações do próprio Codificador e de espíritos. Relacionamos sinteticamente alguns desses registros. Em marcante e último discurso público, Allan Kardec responde à dúvida: "Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por nenhuma prática obrigatória. […] É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para com todos ou, em outras palavras: o amor do próximo, que compreende os vivos e os mortos, pois sabemos que os mortos sempre fazem parte da Humanidade. […] O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade […] O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas.”3
Na obra Emmanuel, esse autor espiritual enumera obstáculos que dificultam melhor desiderato, como “o preconceito acadêmico e o utilitarismo desenfreado que infesta a política e a religião; é ele o maior inimigo da expansão das verdades espiritualistas no mundo, porque oriundo de interesses inferiores e mesquinhos”.4
As perseguições e intolerâncias religiosas de ontem e de hoje devem merecer continuados estudos, observações e reflexões para se criar ideias e estímulos para efetivação de laços fraternais e solidários no seio da população.
Referências:
1) Notícias bibliográficas. Sermões sobre o Espiritismo. Revista espírita. Setembro de 1863. Trad. Abreu Filho, Júlio. São Paulo: EDICEL. 1976.
2) Prefácio. Sermões sobre o Espiritismo pregados na catedral de Metz refutados por um espírita de Metz. Prefácio de Antonio Cesar Perri de Cavalho, da tradução em português da publicação em forma digital por Autores Espíritas Clássicos. 2017: https://universu.blogspot.com/2017/12/sermoes-sobre-o-espiritismo.html
3) Kardec, Allan. Trad. Noleto, Evandro Bezerra. O Espiritismo é uma religião? Revista Espírita. Dezembro de 1868. Ano XII. FEB. 2005.
4) Xavier, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Emmanuel. Cap. XIII. Brasília: FEB. 2013.
(*) Síntese de artigo do autor publicado em: Revista Internacional de Espiritismo. Ano XCIX. N.9. Outubro de 2024.