Kardec, o bom senso

Kardec, o bom senso

Antonio Cesar Perri de Carvalho

Algumas nuances do perfil de Allan Kardec passam despercebidas. Aspectos do educador e pesquisador de fatos precisam ser valorizadas e interconectadas. Kardec não foi um entrevistador de espíritos, um mero intermediário para o registro de informações espirituais ou elaborador de obras com base em teorias. Com preparo intelectual, senso de observação, análise e avaliação, sempre buscou o contato com realidades.

O prof. Rivail dialogava com seus pares e tinha opiniões próprias. O francês Jean Prieur (1914-2016), autor de livros sobre história e temas relacionados com vida após a morte, lembra que os originais de O Livro dos Espíritos, não foram aceitos por alguns amigos editores de Kardec. Prieur destaca que ele persistiu em sua decisão, providenciou a publicação e houve rápida difusão deste e de outras obras de Kardec, com rápido desenvolvimento do Espiritismo.

A experiência do Codificador com suas viagens é comentada por Wallace Rodrigues no prefácio de sua tradução de Viagem espírita em 1862. Destaca que “tudo começa, não exatamente em 1862, como o título sugere, mas, dois anos antes. O Novo ‘Atos’ se inicia nos derradeiros dias do outono de 1860”. Entendemos que com essas viagens, com base nas observações, diálogos e significativos contatos doutrinários, Kardec deu início ao movimento espírita.

Fatos interessantes ocorrem no período de elaboração da 1a edição de O evangelho, então intitulado Imitação do evangelho segundo o espiritismo. Algumas anotações sobre a atuação de Kardec na redação desse livro já expõem aspectos notáveis sobre o perfil do autor. Com o novo livro praticamente delineado, Kardec foi estimulado para realizar um autêntico “retiro” na cidade litorânea de Sainte-Adresse, na Normandia, perto do Havre. Até mensagem espiritual sobre a nova obra ele já havia recebido, contendo orientação de encorajamento. Em agosto de 1863 Kardec estabeleceu-se numa “cabana de praia” alugada e trabalhou “em isolamento”, “livre de qualquer outra preocupação” e assistido por notáveis Espíritos, fez a revisão completa do texto, modificando-o consideravelmente. Por aí podemos notar a sensibilidade e os cuidados que seriam necessários para a análise dos ensinos de Jesus à luz do Espiritismo. A dedicada esposa Amélie Boudet acompanhou-o nos momentos iniciais e retornou a Paris para cuidar da rotina da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Mantiveram assídua correspondência durante os cerca de 50 dias em que ele permaneceu em Sainte-Adresse. Amélie foi sempre companheira, desde as lides educacionais, apoiadora, inspiradora e, sabe-se que, em alguns momentos, também financiadora para edição de obras.

Em abril de 1864 a Livraria Dentu, localizada no Palais Royal, lança Imitação do evangelho segundo o espiritismo. Na edição da Revista Espírita, de agosto de 1864, no “Suplemento ao capítulo das preces da Imitação do evangelho”, Kardec comenta: “Vários assinantes testemunharam o seu pesar por não haverem encontrado, em nossa Imitação do evangelho segundo o espiritismo, uma prece especial, para uso habitual, para a manhã e à noite”. Depois de várias considerações anota: “O mais perfeito modelo de concisão, no caso da prece, é, sem contradita, a Oração dominical, verdadeira obra-prima de sublimidade na simplicidade”.

O autor pensava, analisava sugestões de missivistas e preparava a ampliação da obra. O título original foi reduzido a partir da 2a edição (ou tiragem), atendendo a conselhos de amigos, colaboradores e do Sr. Didier, da Livraria Acadêmica, de Paris. Aliás, Kardec rejeitou propostas de novo título até trazidas por entidades espirituais e usou o seu critério de decisão. Em novembro de 1865, informa que se encontra “no prelo, para aparecer em poucos dias” a 3a edição de O evangelho segundo o espiritismo – “revista, corrigida e modificada”: “Esta edição foi objeto de um remanejamento completo da obra. Além de algumas adições, as principais alterações consistem numa classificação mais metódica, mais clara e mais cômoda das matérias, o que torna sua leitura e as buscas mais fáceis”.

Nessa obra há algumas notas de rodapé que registram estudos e contatos do autor com outras obras e personalidades, como citações a Osterwald e André Pezzani.

Essas nossas rápidas anotações denotam algumas nuances do perfil intelectual consolidado em obras e ações, inserido no contexto de sua época, de atento observador e sem dúvida, caracterizando-se como o “bom senso encarnado”, conforme designação de Camille Flammarion.

As recentes divulgações de manuscritos oriundos de pelo menos três arquivos históricos provenientes da França, estão enriquecendo com detalhes sobre o trabalho, as lutas e o pensamento de Kardec.

Fontes:

1) Prieur, Jean. Allan Kardec et son époque. Mônaco: Éditions du Rocher. 2004.

2) Kardec, Allan. Trad. Rodrigues, Wallace Leal Valentim. Viagem espírita em 1862. Matão: O Clarim.

3) Kardec, Allan. Trad. Abreu Filho, Júlio. Revista espírita. 1864; 1865. São Paulo: EDICEL.

4) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. O evangelho segundo o espiritismo. 131e. Brasília: FEB.